OS FRAGMENTOS DE UM HOMEM INQUEBRÁVEL
De 1999 à 2004, M. Night Shyamalan viveu um período de rara inspiração no mundo do cinema. Apontado (justificadamente) na época como um dos maiores nomes da nova geração de Hollywood, Shyamalan não via concorrentes além do seu próprio ego. Concorrente este que acabou por derrotá-lo amargosamente. Porém, até cair em 'desgraça', O Sexto Sentido (1999), Corpo Fechado (2000), Sinais (2002) e A Vila (2004), lançados em seqüência, tornaram-se obras obrigatórias do suspense. Pelo menos as duas primeiras são Obras-Primas.
Em Corpo Fechado (Unbreakable, 2000), Shyamalan retoma a parceria de sucesso com Bruce Willis numa das histórias mais interessantes que já vi: a revelação de um super-herói à si mesmo. O trabalhador comum, de uma vida simples e insignificante que se descobre indestrutível, mas não sabe o que fazer com tal descoberta. E além: não sabe o que fazer com sua vida. Minuciosamente bem trabalhado, o roteiro de Shyamalan se apoia em uma abordagem realística e até histórica (citando as pinturas nas cavernas pré-históricas, por exemplo) para tratar um tema tão genérico e infantil. E tanto no roteiro, quanto na direção, Shyamalan nos apresenta uma paciência monstruosa na preparação e no desenvolvimento da trama (afinal, não é assim do nada que se aceita um fato destes), colaborando com a atmosfera excepcional impulsionada pela tranquila e magnética interpretação do experiente Bruce Willis, em mais uma demonstração de talento bruto.
Do primeiro ao último segundo, o diretor nos dá uma verdadeira aula de como filmar longos diálogos, ou de como filmar diálogo algum em cena, abusando (no bom sentido) de planos, ângulos e movimentos de câmera inventivos e bem elaborados, que em muitos momentos lembram (superficialmente, é claro) alguns trabalhos de De Palma e Spielberg, como no muito bem filmado diálogo de David (Willis) e Kelly no trem. Há quem reclame do modo de filmar do diretor, mas eu confesso que acho formidável. Neste filme em especial, Shya foi acusado de pecar pelo excesso. Bobagem.
Mas acima de toda sua técnica e perícia (e talento), Shyamalan nos envolve mesmo é no suspense e na tensão que dominam a tela e crescem sem parar, bem como a pesada trilha sonora. É impossível piscar os olhos assistindo à Corpo Fechado. O que dizer de Joseph apontando uma arma para o próprio pai, na tentativa de provar-lhe que é sim, um homem indestrutível??? Magistral!!! Minhas unhas acabam-se toda vez que revejo esta cena.
Mesmo que David tome as ações de protagonista, o personagem de Samuel L. Jackson, Elijah, não é apenas uma dos acontecimentos no longa, mas também um corrimão para guiá-los. Em fato, David apenas executa todos os passos indicados pelo "Sr. Vidro". Elijah toma consciência de sua condição logo nos primeiros anos de existência. Assim sendo, dedica-se a procurar entender o real sentido e significado de sua vida. E a obsessão de Elijah para David, é na verdade uma tentativa de definir se ambos são homens predestinados ou apenas não passam anomalias da natureza, embora ele aceite ser qualquer uma delas. Elijah simplesmente quer ser algo. E essa busca o leva ao descobrimento de David. Sem isso, David passaria toda sua vida infeliz sem saber seu lugar e seu propósito neste universo. E também é curioso notar que aqui, a água representa uma força poderosa, purificadora e destrutiva. Algo visto muito mais claramente no filme posterior do diretor: Sinais.
É interessante notar como David pode ser tão poderoso, mas ao mesmo tempo parece tão impotente e frágil diante de problemas comuns à todos nós, como administrar uma estremecida relação com sua esposa. O personagem parece perguntar-se a todo momento como poderia ele ser tão indestrutível por fora e, ao mesmo tempo, tão fraco e frágil por dentro? De onde viria esta misteriosa condição? Da natureza ou de origem divina? Aliás, a insinuação de David poder ser um anjo caído na terra parece evidente e, devido ao espiritualismo e religiosidade do diretor (e todo seu simbolismo característico), eu não descartaria essa hipótese.
E se Shyamalan acabou por sucumbir perante a própria ascensão e seus últimos quatro filmes - A Dama Da Água, Fim dos Tempos, O Último Mestre do Ar e Depois da Terra - não foram lá grandes coisas, o diretor indiano nos deixou até agora um belíssimo legado, com outros quatro filmes de nível e conteúdo inquestionáveis. E quem disse que só de louros se constrói uma carreira? Que Shyamalan aprenda e evolua ainda mais com seus tropeços e deslises, pois de quem já fez o que ele fez, não se pode duvidar.
Muito obrigado, Lucas. Não chego a considerar fim dos tempos um deslize tão grande quanto Depois da Terra e O Último Mestre do Ar
O filme é razoável... Sempre espero os novos projetos do Shya, esperando que ele acerte a mão outra vez...
Belo texto, Cristian 😎.
Adoro esse, acho que seria meu terceiro favorito do Shya.
Escorregões feios mesmo que ele tem pra mim são A Dama na Água e Depois da Terra. O filme do Avatar até que é legalzinho, já Fim dos Tempos acho subestimado e tem um climão foda.
Shya é bom na claustrofobia. Muita pirotecnia atrapalha o cara.
Curiosidade inútil: meus comentários sobre Corpo Fechado e True Lies não foram meus últimos. Eles já haviam sido escritos há um bom tempo. Fui editar uns erros de ortografia (nem sempre eu reviso) e acabei excluindo. Como tinha cópias, postei de novo. há, há.