Um dos temas mais discutidos nos dias de hoje é o preconceito. Uma doença global que aparentemente não parece ter cura, já que é da natureza do próprio ser humano temer o diferente, principalmente na proteção e auto-preservação de sua espécie. O problema é trazer esse receio tão primitivo para o contexto atual, algo completamente incabível num mundo de tantas facetas culturais diferentes e miscigenação de povos. Um favorável instinto para a evolução do ser humano vira uma de suas maiores maldições. Ainda mais nos EUA, que acabam atraindo milhões por sua posição de país mais poderoso no globo, se fazem presentes quase todos os tipos de pessoas e crenças, um amplo universo de religiões, nacionalidades e muitos conflitos. O cinema norte-americano já abordou diversas vezes o tema, bons exemplos atuais são “Beleza Americana” (em partes) ou “Gran Torino”, mas acontece que um em particular acabou conquistando prêmios e holofotes em grande quantidade na sua época de lançamento, não sendo merecedor de nenhum deles.
Dirigido por Paul Haggis, que posteriormente faria bons roteiros com “Menina de Ouro” e “Cartas de Iwo Jima” e dirigido suspenses dramáticos como “No Vale Das Sombras”, contando ainda com um elenco brilhante e uma razoável trilha sonora, eram quase nulas as chances de tudo dar errado. Mesmo com probabilidade ínfima, tudo deu errado. Todo o filme se move a partir de um acidente de trânsito no centro de Los Angeles, o que ocasionará um conflito étnico e sociocultural enorme nas diversas histórias difusas que se ligam ao acontecimento de algum jeito, uma película que poderia ir tão longe, mas se rendeu aos convencionalismos de falsidade e presunção hollywoodianos, principalmente pelas manias estranhas de Haggis, que transforma seu potencial grande filme num emaranhado moralista e extremamente forçado no conjunto da obra. Apoiado numa direção capenga e inexperiente, num roteiro esquemático e moralista a cada brecha entre as histórias que aborda, em efeitos de câmera risíveis e características técnicas que vão falhando uma a uma, “Crash – No Limite” é uma grande decepção.
A tentativa de englobar diferentes pessoas por alguma situação em que se liguem é empolgante no começo, mas no decorrer do filme acaba se revelando uma grande bobagem pretensiosa. O desgaste da trama logo se faz notável, as falhas vão logo tomando a paciência e a crítica ácida se transforma no constrangimento alheio. As cenas são repentinas e muito mal encaixadas, mas o pior de tudo é a manipulação extrema da obra, conduzindo o espectador como se fosse uma criança, explicitando bem os momentos em que devemos (ou deveríamos) ter pena, raiva, ódio e compaixão daquelas criaturas jogadas sem o menor interesse na tela, usando da presunção criada para anunciar a próxima manchete a ser divulgada. Pior ainda são as pistas do anúncio sensacionalista construído, abusando de músicas melodramáticas e utilizando efeitos toscos de fotografia, como a câmera que embranquece em cenas que deveriam ser tensas, numa direção infantilóide que dá origem a um filme interminável.
A apresentação dos personagens, assim como as preliminares dos tais acontecimentos de colisão entre eles, é brusca e apressada, vindo do nada e voltando para o nada. É incrível como cada um deles acaba tendo somente a finalidade de servir pra chocar ou impressionar e depois serem jogados em escanteio novamente. Haggis não criou pessoas, criou situações. Exibindo um descuidado notável no tratamento de seu próprio roteiro (que já é ruim), o diretor não hesita em mostrar gritaria, atos repentinos, choro fácil, mandíbulas raivosas pra frente, armas de fogo que atiram e não perfuram corpos, tudo no maior estilo jornalístico, narrando os fatos sem nenhuma profundidade e de maneira ordinária. O filme reforça como os seres humanos contemporâneos são ruins, como nem se olham mais nos olhos, como o respeito evaporou na sociedade capitalista em que estão imersos, tudo da maneira mais óbvia e rasteira possível, a ponto de jogar uma personagem na escada e depois de dois segundos enfiar uma ópera no close do corpo caído, só pra justificar que ela estava estressada, sendo que as expressões faciais e os olhares seriam bem mais poderosos do que as situações exageradas e explícitas as quais o roteiro se prende.
Por mais que queiram fugir de estereótipos, os personagens se encaixam neles, um amontoado de seres vulgares e ausentes de qualquer profundidade, conseqüência da escolha em abordar um excesso de histórias e indivíduos, exibindo os acontecimentos sempre apoiados de efeitos risíveis, músicas inconvenientes e muita berraria, só pra disfarçar essa veia sensacionalista tão pulsante. Se focar em estereótipos foi a intenção da película, não ficou tão claro, mas é uma alternativa muito burra e preguiçosa para possibilitar qualquer conexão com aqueles fantoches baratos, não destruindo ou ampliando nenhum dos rótulos criados anteriormente. Sem qualquer expressão ou sentimento humano, a não ser para sentirem raiva um dos outros ou ofenderem alguém, presos somente a parte negativa de suas personalidades, as pessoas retratadas no filme estão longe de serem reais, estão mais para propagandas ambulantes da precariedade humana.
Mas nem tudo é um mar de tosqueiras. Há algumas cenas boas que tiram um pouco a inércia emocional estabelecida (umas quatro ou cinco), principalmente a do policial branco com um homem negro dentro do carro, inesperadas e bem conduzidas dentro da história. As boas atuações não são suficientes para segurar o filme, principalmente pelo fato dos personagens serem total reflexo da pretenciosidade cômica do roteiro, mas até que os atores tentam dar alguma dignidade a tudo aquilo. Sandra Bullock e Don Cheadle são definitivamente os grandes destaques do elenco, ótimos em seus personagens péssimos, garantindo a percepção de suas garras em tornar seus papéis mais do que o vazio ao qual foram originalmente condenados no roteiro. Pequenos detalhes que quase não fazem diferença na avalanche de falsidade montada na obra.
É só observar a premiação do 78º Oscar naquele ano de 2005. O homossexualismo poético e realista de Ang Lee é muito insólito para os padrões da Academia, que resolveu premia-lo com a estatueta de Melhor Diretor e deixar a de Melhor filme para a obra comum, novelesca e desprovida de qualquer capacidade argumentativa que acabou se revelando “Crash – No Limite”, que fugiu constrangedoramente de sua proposta e quase se tornou uma aberração oscarizada. Terrível é o fato de uma obra tão pobre ter conseguido tanto destaque, talvez um dos maiores exemplos na atualidade de quanto a maior parte do cinema norte-americano precisa reavaliar seus conceitos sobre arte e cinema. Toda a reflexão maravilhosa que poderia causar é apodrecida com as insistências do roteiro e da direção atrapalhada de Haggis, gerando um filme ignorante e mal construído em praticamente tudo em que se propõe a fazer com eficiência, foi muito bem vendido pela mídia como genial e bastante crítico, mas não passam de adjetivos que logo somem quando finalmente podemos ver o quanto equivocada é a obra. Se não fosse pelas atuações e os Oscars que ganhou, iria direto para a madrugada dos canais mais fajutos da televisão. Um filme fácil.
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