A partir da consolidação do cinema clássico hollywoodiano, tornou-se comum na apreciação do longa-metragem em si uma maior ênfase à narrativa linear, contínua e autônoma para nós apresentada. Especificamente, passamos a valorizar bastante a respectiva história narrada, a verossimilhança da mesma, a maneira como está articulada, suas inventividades de narração, o modo como trata suas personagens, e, por fim, as mensagens e lições nela contidas e exaltadas. Tal valorização do texto, por sinal, tornar-se-ia ainda mais forte com a chegada do cinema sonoro, uma valorosa ferramenta para a livre articulação e desenvolvimento do script – seja pela maior ou total independência em relação às legendas, seja pelo efeito naturalista compatível com a elaboração de um mundo ficcional autônomo, sustentado pelo roteiro. Dessa forma, é natural que até hoje várias das análises fílmicas veiculadas por diferentes meios de comunicação concentrem-se na narrativa do longa-metragem abordado, nos triunfos ou deficiências daquela história específica mostrada na grande tela (e confesso que é bastante difícil fugir dessa forma de análise).
Todavia, o próprio conceito clássico de cinema, “imagens em movimento”, vem a contestar essa valorização quase suprema do texto (ou dos pormenores do texto). Primeiramente, a narrativa é de fato um elemento importante para o filme. Sobretudo em relação ao cinema clássico hollywoodiano, o roteiro é um efetivo guia ou sustentáculo para aquilo que o longa-metragem busca vislumbrar, tantas vezes com dedicada minúcia. Todavia, é nessa mesma preocupação do filme em ilustrar o texto que reside a contestação à suposta supremacia desse texto. A palavra, no caso, desperta ou inspira uma imagem. Mais especificamente, o texto sempre nos leva a uma série de imagens, físicas ou virtuais, que tanto podem personificar os motivos e significados da palavra quanto podem até ir além dessa palavra original, vislumbrando outras infinitas simbologias e definições. É nesse ponto que chegamos às imagens em movimento e, em geral, a toda elaboração imagética da câmera cinematográfica. Mesmo que dedicado a um roteiro, o longa-metragem ainda se sustenta como uma composição sensorial de imagens (e sons) que captam a sensibilidade do espectador, seu espírito e sua memória – e seria essa importância da imagem bem como a confecção da mesma a enfatizada por tantos movimentos e cineastas contrários a uma estética tradicional que dissimula esse “fator imagético” (Godard que o diga).
Em suma, a essência do longa-metragem ou até seu próprio organismo se resume na elaboração e na organização da imagem; e embora o texto seja uma importante base, o mesmo, no fundo, muitas vezes torna-se apenas uma ferramenta para essa formulação imagética (e poderíamos considerar esse papel do texto mesmo em outros âmbitos artísticos como a Literatura, uma vez que nesta, por exemplo, temos as palavras do romance ou do poema como igual mote para a formulação de imagens em nossa mente ou imaginação). Mas é nessa ênfase à importância fundamental da imagem para o Cinema que chegamos a “Crepúsculo dos Deuses”, clássico absoluto dirigido por Billy Wilder. No caso, é no embate entre o representante decadente de um “cinema textual” moderno e uma representante decadente de um cinema mudo quase extinto que vemos um igual atrito entre a suposta supremacia da palavra e o domínio inevitável, absoluto e insano da imagem – ao menos no âmbito do Cinema aqui representado por uma indústria tão sensível e criativa quanto cruel e exploradora.
Apresentado já no começo do filme como um cadáver mergulhado na piscina da pomposa mansão situada no Sunset Boulevard, Joe Gillis (ótimo William Holden) desde as primeiras falas de sua narrativa “pós-morte” revela-se como símbolo ácido e irreverente de um cinema sonoro moderno que valoriza as tiradas criativas de seu script. O próprio filme, em verdade, parece representar esse cinema discursivo na medida em que aparentemente se orienta a partir do relato mórbido de Gillis, o qual, aliás, trabalha justamente como roteirista associado a Hollywood – e são várias as referências da câmera a esse cinema de textos e falas, como no quadro em que o chefe de Gillis se deita sobre uma divã situada abaixo de uma estante repleta de livros ou na cena em que vemos o diretor Cecil. B. DeMille orientando a gravação da cena de seu novo filme por intermédio de um microfone. E se o filme gira em torno da elaboração de um roteiro – o épico “Salomé” de Norma Desmond que Gillis faz o possível para converter em algo decente – o próprio sujeito, por fim, ressalta em pontuais momentos a importância do roteirista para a elaboração do mundo de sonhos de Hollywood, chegando a lamentar, inclusive, a importância secundária sempre concedida aos roteiristas em detrimento do estrelato dos cineastas e atores. É nessa importância secundária, inclusive, que já temos uma primeira contradição nessa suposta supremacia do texto na concepção cinematográfica, uma vez que o roteirista continua em segundo plano por conta de alguma coisa que ainda se sobressai ao seu roteiro – e isso se reflete na condição econômica de Gillis, mergulhado em dívidas e mais e mais rejeitado pela indústria que não aprova suas últimas propostas.
Mas é em sua decadência que Gillis encontra Norma Desmond. Olhos arregalados, rosto mais do que expressivo, eloquente em todos os seus mínimos gestos e posturas, Desmond é o símbolo exuberante de um cinema já praticamente extinto: o cinema mudo, dependente absoluto de uma composição imagética pura que requeria a plena expressividade de seus quadros e atores (“Não precisávamos de diálogos. Tínhamos faces.”). Mas antes de Norma Desmond, o encontro com esse cinema mudo já é antecipado logo na chegada de Gillis na Sunset Boulevard. Fugindo quase que desesperadamente dos fiscais que querem tomar seu carro, Gillis protagoniza uma clássica sequência de perseguição típica daqueles primeiros filmes apresentados nos teatros vaudeville antes mesmo da consolidação do cinema tradicional/narrativo da indústria hollywoodiana. O mesmo pode ser dito em relação à luxuosa mansão de Norma Desmond. Em oposição à simplicidade dos cenários anteriores, a casa torna-se uma verdadeira poluição visual tamanha a suntuosidade de sua meticulosa e rica decoração, e a artificialidade desse cenário acaba por igualmente remeter aos primeiros filmes do vaudeville que, antes de uma preocupação com uma imagem naturalista, buscavam a confecção de uma imagem atrativa e mesmo ostensiva, que captasse, na exuberância de seu espetáculo, a atenção de seu espectador (embora, obviamente, a câmera de Billy Wilder já contenha a perspectiva e a tridimensionalidade de um cinema moderno).
Mas o ápice dessa extravagância expressiva ainda é Norma Desmond. Encarnada por uma poderosa Gloria Swanson (que de fato foi uma musa do cinema mudo), a atriz, mesmo na decadência de seu extremo e obsessivo saudosismo, parece atrair para si a plena atenção de todas as personagens, da câmera e até mesmo de seu espectador, tamanha a inexplicável força que exala de sua imagem impetuosa e incisiva – e somente a força de seu olhar já nos leva a aceitar sua primeira grande máxima: “Eu sou grande! Os filmes é que ficaram pequenos!”. Billy Wilder, aliás, sabe muito bem como realçar essa aura de Desmond, filmando-a num belo estilo noir cuja iluminação etérea (típica dos filmes clássicos de Hollywood) parece enfatizar tanto a silhueta da atriz quanto o rosto expressivo da mesma (e isso sem mencionar o belo contraste de um quadro particular no qual Desmond, em uma exibição privada de seus antigos trabalhos cinematográficos, subitamente se ergue na frente da luz do projetor, numa pose exaltada). Mas a despeito da “imagem gravitacional” de Norma Desmond, Wilder igualmente vislumbra na figura da antiga musa a condição decadente de uma geração de “estrelas fílmicas” agora de todo abandonadas pela indústria que um dia ajudaram a sustentar.
Há tantos anos sem participar de um mísero filme, Desmond torna-se uma relíquia viva, sustentada pela glória de seus antigos feitos na tela grande mas distante de uma Hollywood que já não mais deseja a sua excessiva expressividade, descartando-a em prol das novas demandas da indústria. Dessa maneira, Billy Wilder acaba compondo uma ríspida crítica ao “star system” hollywoodiano ao vislumbrar as tristes “teias de aranha” que se formam sobre uma velha artista ainda extremamente apaixonada pela câmera (e de certa forma já de todo possuída pelo próprio Cinema) – e tal decadência ainda é compartilhado por outras antigas estrelas companheiras de Desmond: os “bonecos de cera” que frequentemente visitam a mansão da atriz para jogar cartas (e tais amigos, diga-se de passagem, são igualmente interpretadas por atores renomados do cinema mudo como Buster Keaton). É dessa forma que chegamos até a passagens particularmente tocantes como aquela em que Desmond se emociona ao se ver novamente dentro de um set de filmagens.
Todavia, é na luta contra essa decadência que Norma Desmond torna-se obcecada pelo retorno ao longa-metragem e, principalmente, pela sua própria imagem, refletida pelos vários espelhos de sua mansão ou reiterada pelas diversas fotografias da atriz, tiradas nos seus tempos de sucesso. Mas é na obsessão por sua imagem e na afirmação de seu estrelato que Norma Desmond acaba afirmando o poder predominante e fundamental da própria imagem em si no fazer cinematográfico. Desmond, no caso, não se preocupa com maiores elaborações do roteiro de seu novo filme “Salomé”. Ela se interessa pela épica composição plástica de suas futuras grandes cenas e, principalmente, por sua figura imponente e dramática a ser celebrada por todas essas cenas. Com isso, a despeito dos métodos da narrativa, o que prevaleceu e sempre prevalecerá será a imagem da estrela ou, mais especificamente, a imagem celebrada pelo olho da câmera. Gillis lamenta que o roteirista tenha sua importância secundarizada pelo cineasta e pelo ator, mas isso se deve ao fato de a composição imagética (ou sensorial considerando a trilha sonora) ser o verdadeiro atrativo para a sensibilidade do espectador. No final, serão os olhos evocativos, intensos e arregalados de Norma Desmond que permanecerão na memória afetuosa daquela ou daquele que assistirá ao filme (e a câmera de Wilder reconhece isso em um interessante momento em que, da posição superior de Gillis, passa a enquadrar mais e mais o rosto de Desmond, como se estivesse se entregando à estrela).
O roteiro, portanto, continua importante mas importante como ferramenta para a elaboração de uma imagem cuidadosa e estrategicamente elaborada pelo cineasta e protagonizada pela figura imponente da estrela – uma relação talvez injusta mas verdadeira quando se constata a obra de arte cinematográfica como uma obra fundamentada pela imagem. Um belo símbolo disso é o quadro em que Betty Schaefer (Nancy Olson) interrompe o trabalho na máquina de escrever para contemplar o companheiro de trabalho Joe Gillis, numa cena em que o olhar da personagem se sobressai à palavra ou personifica a palavra em prol de uma atitude afetuosa que intervirá na sensibilidade dessas pessoas. Por sinal, é interessante como o próprio “Crepúsculo dos Deuses” passa a gradativamente afirmar essa “vitória” da imagem. Embora conte com a narrativa mórbida de Gillis até a última cena, o longa não demora a apostar nas sutilezas de uma composição imagética independente da expositividade do relato. Com isso, além do quadro descrito acima, temos outros interessantes e mesmo divertidos jogos com a imagem, como os portões gradeados da mansão de Desmond (símbolos da prisão dos habitantes daquela casa) ou mesmo um inspirado plano em que vislumbramos uma extensa porta cuja ausência de maçanetas faz com que os buracos ocos, iluminados pela luz interna do aposento, se convertam em dois olhos que parecem espionar o pobre Joe Gillis (e o que dizer dos momentos em que o filme remete aos melodramas do cinema mudo a partir de repentinos closes da câmera e dramáticas elevações da trilha sonora?).
Até em algumas passagens ou nuances da narrativa reconhecemos a predominância da imagem. Na sequência em que a jovem Betty visita um cenário do estúdio afirmando ser aquele local a rua mais maravilhosa em que já esteve, ela não deixa de afirmar o impacto ainda predominante daquele cenário – ou daquela confecção imagética – em suas memórias associadas a esse mundo cinematográfico. Quanto a Gillis, se este é requisitado por Norma Desmond para refinar o roteiro de “Salomé”, tornando-se ainda o interesse amoroso da atriz (o que poderia afirmar a supremacia da palavra), o mesmo acaba se tornando dependente de Desmond na medida em que esta lhe proporciona abrigo e sustento. Ou seja, o roteirista é novamente submetido pela estrela cinematográfica. Pior: o próprio Gillis se submete à elaboração imagética nos momentos finais em que “interpreta” um tipo arrogante e inescrupuloso para despistar Betty. E por fim temos a descoberta de que todo aquele cenário insano da mansão do Sunset Boulevard é fruto da manipulação e da elaboração de um antigo diretor de cinema mudo, Max von Mayerling, aqui disfarçado como o mordomo Alfred que faz o possível para sustentar a fantasia imagética de “madame” para preservar a beleza de sua estrela – ou seja, desde o começo Gillis e o espectador lidavam com a confecção extremamente habilidosa, estratégica e envolvente de uma imagem (e menção seja feita ao intérprete de Max, Erich von Stroheim, consagrado ator, cineasta e roteirista do cinema mudo).
Mas é na icônica sequência final que “Crepúsculo dos Deuses” afirma por definitivo a supremacia da imagem. Se o filme fora conduzido pela narrativa de Gillis, a mesma é, tal como o homem em si, assassinada por Norma Desmond, a qual desce em devaneio as escadas de sua mansão, interpretando o seu grande papel de retorno. E mesmo as últimas declarações mórbidas de Gillis acabam cometendo um equívoco. Segundo o roteirista, Desmond seria “assassinada” pelas condenações apelativas das manchetes dos jornais. Entretanto, Desmond não “morrerá” pois sua imagem trágica e dramática prevalecerá sobre a manchete. Desmond, no final, não deixa de ser uma vítima trágica de sua própria “imagem fílmica”, mas o mais importante e o mais memorável é o modo como ela ainda encara o espectador em seu último close-up, com a dramaticidade poderosa e violenta de seus olhos. Um olhar firme e direto que remete uma última vez aos primeiros filmes do vaudeville, nos quais os atores frequentemente observavam seu espectador, chegando a interagir com este. Ou seja, remete mais uma vez ao cinema explicitamente ancorado na imagem pura, ou no sensorial puro, que cativa, conquista, domina seu espectador maravilhado por esse novo olhar sobre o mundo. A imagem de Norma Desmond derrota quaisquer narrativas caluniosas sobre ela e se impõe vitoriosa, se dissolvendo em uma composição abstrata na qual a imagem é ainda mais imagem: oblíqua, dominadora, absoluta. E é no olhar desse poderoso close-up que vislumbramos a força e a essência da 7ª Arte.
Crítica perfeita e bem formulada.
Filmaço indispensável, obrigatório para qualquer ser que cogite se debruçar para um estudo sobre a Narratividade cinematográfica.