''A complexidade das relações humanas e a cegueira da sociedade, por Stanley Kubrick.''
Alice (Nicole Kidman) é uma curadora de arte casada com Bill Harford (Tom Cruise), um médico de sucesso. Juntos, formam nas aparências, um casal perfeito. Más não é bem assim. Alice perdeu seu emprego recentemente, pois a galeria onde a mesma trabalhava faliu, fazendo com que ela se dedique totalmente a sua casa e a sua filha junto à Bill, Helena. Bill é um médico de sucesso, que atende muitos de seus pacientes ricos, nas suas respectivas casas. Assim, Bill ganha algumas regalias de alguns senhores que tornam-se seus amigos pessoais. Um deles é Victor Ziegler (Sydney Pollack), que sempre o convida para grandes eventos. Bill e Alice demonstram sinais de cansaço e frieza entre si, más quando vão a um evento do alto escalão social (como os de Victor), colocam suas "máscaras felizes" e não sentem pudor algum em fazer isso. E assim como as pessoas da elite da qual eles se socializam em tais eventos, existe uma grande diferença entre a fachada que eles colocam, e a realidade. Alice parece estar extremamente entediada com sua vida de mãe dona de casa, ela parece não se sentir tão bem em ser totalmente sustentada pelo marido. Interessante é que o nome ''Alice'', é muito provável que seja uma referência de Kubrick ao personagem principal de ''Alice no País das Maravilhas'' (um conto de fadas sobre uma garota que está entediada com sua vida e através de um espelho vai morar no País das Maravilhas). Em Eyes Wide Shut, Alice é em vários momentos mostrada olhando pra si mesma no espelho. Inclusive no pôster, ela olha no espelho enquanto é beijada por Bill. O que Alice estaria procurando lá ?. Na cena inicial, nos é mostrado o casal se arrumando para ir a uma grande festa de natal na mansão de Victor Ziegler. Ao entrar na festa, a primeira coisa que chama a atenção é decoração de Natal nada discreta da mansão. Uma estrela de oito pontas pode ser vista em praticamente toda a casa. Essa estrela encontrada por todos os cantos na casa de Victor, é idêntica ao antigo símbolo da estrela de Ishtar. Claro que, detalhista como era o diretor, a inclusão dessa estrela de Ishtar em tal festa não é uma mera obra do acaso. Ishtar foi uma deusa babilônica da fertilidade, do amor, da guerra e principalmente da sexualidade. Além dos rituais de caráter sexual (como vemos que ocorre claramente quando Bill se infiltra na seita), os outros rituais eram relacionados a libações e ofertas corporais. Seu culto envolvia também a prostituição sagrada. Ela foi considerada a cortesã dos deuses, e teve muitos amantes. Em muitos livros é retratada como uma excelente amante, porém, muito cruel com os homens que se apegavam a ela. Esse conceito é colocado em questão por diversas vezes no filme, especialmente com Alice. Na festa, Bill e Alice flertam com outras pessoas como se ainda fossem solteiros, uma hipocrisia que não passa despercebida pelo diretor. Kubrick, um homem que na época era casado, obviamente não iria deixar de criticar a atitude de seus personagens, pois logo na cena seguinte, o casal se abraça em frente ao espelho enquanto a música ao fundo toca : ''Eles fizeram uma coisa errada''. Uma crítica até bem sútil para os padrões do diretor. Ainda na festa, o casal segue rumos diferentes, e ambos são confrontados com a tentação a todo momento. Alice é abordada por um charmoso húngaro chamado Sandor Szavost, que lhe pergunta sobre a "Arte de Amar", de Ovid. Esse livro, foi escrito durante os tempos da Roma Antiga, e era basicamente um guia de "Como Trair seu Marido", e era muito popular entre a elite na época. O primeiro livro da série, é sobre uma invocação a Vênus (curiosamente o planeta associado a luxúria). E Ishtar, (e seus equivalentes em outras culturas) foi considerada a personificação viva de Vênus. Voltando a festa, enquanto Alice, já embriagada, cede cada vez mais as investidas de Sandor, Bill flerta com duas belas modelos que dizem querer levá-lo para "onde o arco-íris termina". O significado desta frase enigmática nunca é explicitamente mostrado, más nós podemos decifrá-lo através dos muitos simbolismos apresentados de forma sutis e as vezes nem tanto, ao longo do filme. O diálogo (flerte) entre Bill e as modelos é interrompido quando um homem o avisa de que Victor precisa dele. E é nesse momento que presenciamos pela primeira vez a real face da elite. Victor está se vestindo, enquanto num sofá está uma moça nua sentada, inconsciente. Se você prestar um pouquinho de atenção, lembrará que quando Bill e Alice entraram na festa, foram recebidos por Victor e sua esposa, numa sala cheia de luzes de natal por todos os cantos. Más quando Bill vai "onde o arco-íris termina", vemos o que ocorre de fato, Victor está com uma provável ''escrava Beta'' que teve uma overdose ao misturar drogas pesadas e bebida. Após um rápido exame de Bill, a moça torna-se consciente novamente, e Victor tenta se livrar dela o mais rápido possível. Repare na diferença ressaltada por Kubrick entre ''riqueza e caráter'' em tal cena. O diretor mostra o ambiente extremamente luxuoso da elite (o banheiro de Victor parece mais uma sala de estar), más ao mesmo tempo ressalta que isso não o torna necessariamente uma pessoa de boa índole. No dia seguinte a festa, Bill e Alice não haviam tocado no assunto ''festa'' ainda, más após Alice pegar um cigarrinho de maconha para ambos fumarem (guardado no armário de remédios, algo nada gratuito por parte do diretor ..), e ficar com o perdão da palavra, ''na brisa'', começa uma discussão com Bill, que não parece dar muita atenção ao que sua esposa diz. Alice diz para Bill que poderia ter o traído na festa, más Bill diz à ela que a ama e confia na mesma. Ao perceber que não desperta ciúme algum em seu marido, ela começa então a lhe contar uma história, com o intuito de machucá-lo de alguma maneira. Ela revela ao marido que numa viagem feita pelo casal, no momento em que ela olhou para um desconhecido oficial da Marinha, se apaixonou perdidamente. Alice diz que sentiu uma atração tão forte, que mesmo sem sequer ouvir a voz dele, teria largado Bill e a filha ali, naquela mesma hora, se fosse correspondida. Alice enfim, provoca em seu marido os sentimentos de ciúme, insegurança e humilhação, que tanto queria. Tudo muda quando ela admite que teve tais fantasias sexuais com um estranho. Bill fica perturbado, más não tem tempo de discutir o assunto com Alice, pois logo em seguida o telefone toca. É a filha de um paciente avisando-o da morte dele. Bill veste-se e sai imediatamente, sem saber ao certo o seu destino final. É o início de um passeio hipnótico e perturbador pelas ruas de Nova York, em busca de uma relação carnal fora do território do casamento, ou apenas por uma dose do desconhecido.
O casal agora vive um total drama, parecem viver numa certa ânsia de outras sensações fora do casamento, território que tornou-se quase ''inabitável'' para ambos após a revelação de Alice. Bill busca o prazer do desconhecido, sua jornada é em busca do êxtase existencial e sensorial, despertado pelo fato de descobrir que sua mulher sentiu desejo por outro homem. Então, para ele, nada mais justo que ''sentir'', seja lá o que for, também. E ambos discutem a magnitude de suas experiências no brilhante diálogo final. Bill, após sair da casa onde foi beijado inesperadamente pela filha de seu amigo que faleceu, encontra o amigo de faculdade Nick Nightingale (Todd Field) no Jazz café em que Nick disse que iria tocar (ambos conversaram rapidamente na festa de Victor). Na conversa entre ambos, Nick revela a Bill que ele ás vezes é contratado por pessoas do alto escalão social para tocar, de olhos vendados, durante misteriosas festas que estão sempre cheias de mulheres. Tal informação intriga e ao mesmo tempo seduz Bill, que desde a revelação de Alice, está à procura de alguma experiência totalmente fora dos padrões. Após a insistência de Bill, Nick concorda em passar as informações necessárias para que ele entre na ''festa''. A senha pra entrar é ''Fidélio'', que significa fidelidade. Além disso o significado também pode ser o nome de uma ópera escrita por Beethoven, sobre uma mulher que se sacrifica para libertar seu marido da morte. Uma metáfora kubrickiana das mais geniais. Bill aluga a roupa e a máscara necessárias para entrar em tal evento. Quando ele entra na mansão onde é realizada a ''festa'', tudo se transforma. Não existem mais árvores de natal e luzes coloridas por todos os lados. E as pessoas ao invés de tagarelar incessantemente, ficam em um estado de silêncio quase mórbido. O que reina agora é o silêncio, é o prazer, é a morbidez.
O que parecia ser apenas uma festa altamente particular, não é. Logo se revela um evento ritualístico obscuro, com muitas pessoas presentes, e todas mascaradas. O ritual que Bill presencia começa com o aparente Sumo Sacerdote, todo vestido de vermelho e devidamente mascarado, realizando aparentemente uma rotina cerimonial. Ele está exatamente no centro do que dá a entender que seja um "círculo mágico", formado por mulheres que muito provavelmente são ''escravas Beta'' (sim, isso mesmo). O ''círculo mágico'' é um conceito usado em rituais de magia negra durante invocações. A colocação das pessoas em ambas cenas durante o ritual (a do início e depois, quando Bill é descoberto e tem que ir ao centro), lembra muito a formação do círculo mágico. Outra coincidência grande demais se tratando de Kubrick. A música ouvida no ritual, chama-se "Backwards Priest", e apresenta uma Liturgia Ortodoxa Romena Divina, que é tocada de trás pra frente. A reversão ou inversão de objetos sagrados é típico da magia negra e de rituais satânicos. E a música parece ser uma parte fundamental do ritual, pois existe até uma coreografia perfeitamente executada para ela. Uma liturgia cristã executada de forma invertida antes da orgia generalizada que virá em seguida, é a forma mais comum de profanação em um ritual desse tipo. Tais rituais, incorporam tentativas reais de invocações e incluem sacrifícios de sangue e outros atos totalmente imorais. E Bill, deslocado, logo é desmascarado. E a moça que o havia alertado sobre o perigo de ele estar presente ali, grita ao Sumo Sacerdote que quer redimir os atos de Bill. Tudo isso num tom altamente dramático que chega a ser assustador mesmo. Logo após ouví-la, o Sumo Sacerdote responde com extrema frieza : - "Tem certeza que você entende o que está tomando para si fazendo isso ?". Qual o significado da pergunta do Sumo Sacerdote ?. A resposta é simples, significa que ela será abusada seguidamente por uma dezena ou até uma centena de homens, e depois será sacrificada. Com sacrificada eu quero dizer que, sim, ela será morta. Com a moça tomando as punições para si, Bill é apenas expulso do local, más ainda lá dentro, vê seu amigo Nick aparentemente desacordado sendo carregado por outras pessoas.
Reparem que o nome da loja onde Bill aluga sua roupa e a máscara para ir a ''festa'', chama-se "Rainbow" (arco-íris). O nome da loja abaixo dela é : "Under the Rainbow" (sob o arco-íris). O diretor tenta nos passar uma mensagem, algo como : ''até onde o profano pode ir, e além''. E isso fica claro nessa cena. Em quase todas passagens do filme, o multicolorido fica bem destacado na tela, porém quando entramos na Seita junto à Bill, tudo fica nebuloso, sem vida. Ali é ''onde o arco-íris termina''. No filme de Kubrick, há portanto, dois mundos totalmente diferentes, o "mundo do arco-íris", onde tudo é feliz e inocente, onde todos são simpáticos com todos, e o mundo ''onde o arco-íris termina", onde a elite se reúne e executa seus rituais. A diferença entre os mundos é enorme, quem é do mundo do arco-íris não pode transitar no mundo onde o arco-íris termina, e o contraste entre esses dois mundos transmite uma sensação de divisão quase intransponível. No filme, é bem comum as luzes multi-coloridas ficarem em destaque na tela. A função simbólica e universal do arco-íris (da qual a maioria acredita ser), é a mediação entre a terra e o céu, entre o ''outro mundo'' e o nosso. Na obra de Kubrick, existem, portanto, dois mundos totalmente distintos, o mundo do arco-íris e das luzes natalinas multi-coloridas, e o outro mundo, totalmente obscuro e estarrecedor, onde o ''arco-íris termina'', que é onde a elite se reúne para a prática de orgias e rituais. Sendo assim, quando as modelos perguntam a Bill no início do filme se ele quer ir "onde o arco-íris termina", elas provavelmente se referem ao local onde a ultra-elite se reúne executa seus rituais. E é a partir desse ponto (após o ritual), que a jornada de Bill então se alterna entre o fascínio da luxúria e o que se pode fazer com o poder, e o que há por trás disso tudo, atos imorais, que mancham quem os realizam, pelo menos aqueles que tem consciência. Bill então, transita entre o desejo e a repugnância, entre o sexo entre anônimos e a fidelidade carnal que ele sente obrigação de manter com sua esposa. Bill vê a realidade de onde o arco-íris termina não só quando ele frequenta o ritual, más também quando volta a loja para devolver a roupa e a máscara alugadas. O dono da loja que antes parecia apenas um pai preocupado com os atos de sua filha, agora a vende como se fosse outro simples produto de sua loja. E depois de ver dezenas, centenas de escravas sexuais mascaradas no ritual na mansão e consequentemente se excitar com elas, Bill vê o outro lado da moeda. As garotas que são vendidas para esse tipo de ritual, são muitas vezes menores de idade, e grande parte delas é comprada com o intuito de serem transformadas em ''escravas beta'' a longo prazo.
Um dia após o ritual, Bill chega na sua casa e encontra sua máscara assustadoramente ''dormindo'' ao lado de sua esposa. Seria Alice tentando nos dizer que está plenamente consciente do que está havendo ? que ela está participando de tal ritual também ? ou é um aviso da sociedade secreta para que Bill encerre suas investigações senão sua família será ferida ?. Não nos é mostrado Alice falando sobre a máscara (Kubrick ..), então de fato, nunca saberemos. Más Alice descreve ao seu marido um sonho que é semelhante ao que ele acabara de testemunhar na vida real, algo bastante intrigante, que nos coloca em dúvida sobre onde ela realmente estava. Será mesmo que foi mesmo apenas um sonho ?. Resta à nós interpretarmos como bem entendemos. O filme torna-se num certo ponto, um conto sobre o homem moderno com suas angústias e medos, vaidades e percepções, que por vezes pareciam irreais, más que no fundo estão lá, na cara de qualquer um que quiser ver. Tudo isso após uma revelação dolorosa de sua esposa, que o machuca de uma forma tão profunda, que ele precisa sentir algo, qualquer coisa que nunca tenha sentido. Tal revelação precisa ser ''contra-balanceada'' na relação do casal. Bill está a procura de uma maneira de satisfazer seus instintos mais primitivos. No final, ele está quase implorando por um pedaço de ''carne''. É o homem em busca do indefinido (mesmo sendo a mulher, o que ele busca é o prazer sem conhecimento), algo desconhecido, visceral. Bill não será completo enquanto não se encontrar em paz com o seu oposto primitivo e sexual, o sexo feminino. Ele que era um homem acomodado com sua vida, rico, com uma bela esposa e um emprego que lhe rendia muito dinheiro e amizades poderosas. Más após a revelação da esposa, ele torna-se obsessivo em encontrar algo que não possui e talvez não possa possuir. É corriqueiro no filme, cenas em que Bill puxa dólares de sua carteira (bem gorda, aliás). Seja para pagar pelo tempo de um taxista, pelo incômodo em fazer um homem abrir sua loja em plena madrugada, ou para pagar pelo tempo de uma prostituta. Essa tal prostituta que Bill conhece, chama-se Domino (Vinessa Shaw). Eles não fazem sexo apenas pelo fato de uma ligação de Alice atrapalhar, acabando totalmente com o clima, fazendo com que Bill vá embora em seguida. Mesmo que obviamente não pareça de início, na verdade existem grandes semelhanças entre Alice e Domino. Alice é uma mulher da alta classe, respeitada no seu ''habitat''. Porém, ela usa de sua aparência dentro de uma relação onde já não parece existir amor. No fundo é algo parecido com o que uma prostituta faz. Já no pouco tempo em que Bill e Domino ficam juntos, estranhamente é tudo tão terno, sensível. Se não fosse a insistência de Bill em pagá-la, poderia ser considerado um breve romance sim. Sendo assim, Alice e Domino não são tão diferentes quando seus níveis sociais já não importam tanto assim. No dia seguinte ao encontro, Bill ainda demonstra interesse em Domino. Ele aparece em sua casa com um presente de natal, más sua colega de quarto lhe informa que ela foi diagnosticada como HIV positivo, sendo assim nunca mais poderá trabalhar ''nesse meio''. Será isso verdade mesmo ? reparem que Domino desaparece ''coincidentemente'' após o ritual.
Ainda no dia após o ritual, Victor chama Bill para uma conversa em sua casa. Ele revela a Bill que sabe do ocorrido na noite passada. Bill, perturbado, o questiona veementemente sobre a morte de Amanda. Victor age com total indiferença, como se fosse algo totalmente banal uma pessoa ''comum'' ser morta pela elite. ''Ela era uma prostituta. Teve uma overdose, ela era uma drogada, era apenas uma questão de tempo pra ela morrer, e a polícia não viu qualquer crime.'', diz Victor. Quando Bill parece insistir em querer tomar as investigações para si, Victor, numa clara tentativa de aterrorizá-lo psicologicamente ainda mais, diz à ele : "Eu acho que você não percebeu o tamanho do problema que você se meteu na noite passada. Quem você acha que eram aquelas pessoas ? Aquelas não eram apenas pessoas comuns. Se eu lhe dissesse seus nomes, e eu não vou te dizer os nomes, más se eu o fizesse, eu acho que você não iria dormir tão bem". Victor, nesse diálogo, admite que as pessoas que frequentam esse ritual são do mais alto escalão social. Pessoas publicamente conhecidas e poderosas em seus meios. Deixando claro que esses tipos de rituais estão fora dos limites para o ''profano'', uma pessoa comum não pode habitar esse lugar. E talvez seja esse o ponto no filme em que a mensagem de Kubrick chegue ao seu ápice. Um recado mais do que direto para o alto escalão da sociedade, seja ela política, artística, ou apenas pessoas da ultra-elite que frequentam esse tipo de ritual por absoluto prazer, e não enxergam problema algum em ''eliminar'' pessoas que eles julgam estar abaixo delas, quando essas descobrem tais atos. Nesse diálogo entre Bill e Victor, se resume tudo o que o diretor pensa sobre esse mundo, e a sua vontade de passar isso ao espectador poderia se resumir em uma frase : ''Hellfire Club, por Stanley Kubrick''. Más como sempre fez, o diretor deixa isso um pouco implícito para que o espectador ative sua imaginação, pesquise, leia, procure saber o que eles quis dizer em cada diálogo, cada cena, cada colocação de objeto. O diretor não entrega nada de ''mão beijada'', você tira sua conclusão sobre filme. Nem o próprio pensamento de Kubrick é absoluto, assim como ele fez em ''2001 - Uma Odisseia no Espaço'', deixando a obra aberta a interpretações, aqui ele faz o mesmo. Más os espertos saberão o que ele quis dizer.
Embora o diretor nunca dê um nome de fato a sociedade secreta infiltrada por Bill, há simbolismos e mensagens ocultas mais que suficientes para nós compreendermos o tipo de gente que ele está se referindo. Sim, tais sociedades secretas existem e estão mais poderosas do que nunca. Elas agem discretamente, e em sua camada social são praticamente inatingíveis. Você nunca verá isso no noticiário da manhã, porque ricos usando pessoas/profanos como objetos sexuais e os matando, os transformando em escravas beta, não é algo muito importante, não pode ser real. O local escolhido por Kubrick para filmar as cenas do ritual da sociedade secreta é interessantíssimo, e bastante simbólico também. A mansão Mentmore Towers foi construída no século XIX por um membro da família da elite mais importante e poderosa do mundo da época, os ''Rothschilds'', que naquela época quando a família estava no seu auge financeiro, possuía a maior fortuna privada do mundo. Ao escolher tal local para filmar as cenas mais obscuras do filme, Kubrick parecia estar tentando mostrar aos espectadores a verdadeira face da elite, e o que ele pensa sobre ela, e não só atual, como a de outras épocas também. Isso fica mais evidente ainda quando vemos as máscaras usadas no ritual, que remetem as máscaras usadas na festa da família realizada em um evento da vida real. Outra grande coincidência ? fato é que que os Rothschilds realmente participaram de eventos mascarados muito semelhantes ao ''evento'' mostrado na obra de Kubrick. Segundo alguns livros e relatos da época, em uma festa (altamente particular) realizada na mesma mansão, os convites foram feitos de trás para frente. E a música que ouvimos na sequência do ritual (a já citada Backwards Priest da divina liturgia da Igreja Ortodoxa Romena), também é tocada no sentido inverso. Tudo explicitando que Kubrick queria que víssemos a ligação entre o local escolhido por ele para a dramatização, e os eventos reais ocorridos em tal lugar.
As máscaras utilizadas na obra também chamam bastante atenção. Hipnóticas e olhando diretamente para nós, essas máscaras assustadoramente silenciosas são um grandioso alerta para a sociedade atual. Nos mostrando as verdadeiras faces de grande parte da elite, Kubrick revela um lado obscuro, pouco visto e retratado no cinema. Muitas vezes a ultra-elite é repugnante, suja, imoral. E raramente quem participa de tais rituais, é punido pelos atos cometidos, pois a mídia é paga para fingir que nada aconteceu, ou simplismente distorcer os fatos (como ocorre na morte da modelo). Reparem que nos créditos finais do filme, é listado que o papel do Sumo Sacerdote foi realizado pelo assistente de direção do filme, que no caso seria Leon Vitali. Na cena em que Bill lê um artigo do jornal no café, pausem e leiam com muita atenção. No artigo, é mencionado que a modelo que morreu, foi vista pela última vez sendo escoltada para o seu quarto de hotel por dois homens, e que ela estava extremamente sorridente (provavelmente muito drogada). Leon Vitali é mencionado como um designer de moda com quem ela teve um breve affair. A overdose é citada como a causa de sua morte ao final do artigo. Aqui, Kubrick revela a real natureza dos tortuosos caminhos da indústria da moda. Pessoas da alta sociedade, do entretenimento, também estão envolvidas em tais atos ritualísticos. Após a leitura, é óbvio que Kubrick não quer que nós acreditemos que ela foi morta por uma overdose, nas entrelinhas nós sabemos o que ele quer dizer, e muito bem. Mensagem recebida e compreendida com sucesso, Mr. Kubrick. E ainda por cima temos a questão de ''Leon Vitali''. Porque o homem que realizou o papel do Sumo Sacerdote é listado no artigo de jornal como um affair da modelo morta ? outra grande coincidência ? apenas um nome colocado ali sem fundamento algum ? eu acho que não. Uma conclusão simples e racional ? Leon Vitali, o designer de moda, é também o Sumo Sacerdote, isso mesmo. Esse é só mais um dos inúmeros enigmas que estão presentes no filme. Por isso quando você vê uma obra de Kubrick, deve prestar total atenção da cena inicial aos créditos finais, nada está ali pelo simples fato de apenas estar, tudo tem seu valor, seu significado, seu simbolismo plenamente encaixado e/ou histórico.
Durante todo o filme, ninguém atinge o clímax, em momento algum. Enquanto Bill tem muitas chances de satisfazer seus desejos com diversas mulheres lindas, nunca realmente acontece, e nem ele sabe realmente o porque disso. Enquanto o filme vai avançando, seu desejo vai inevitavelmente aumentando, cada vez mais. Porém, Bill consegue mantê-lo sob controle. Ele constantemente imagina sua esposa com o oficial da Marinha com o qual ela teve fantasias sexuais. E a cada passagem tudo vai se tornando mais intenso, más o clímax, não é atingido, nem em seus pensamentos. Bill e Alice, no fim, sofrem uma profunda transformação como casal. A ''inocência'' do início é substituída por uma relação que os torna plenamente conscientes de que desejam sim um ao outro, más isso não os impede que desejem pessoas das quais não conhecem, seja por um segundo sequer. Bill, numa tentativa de fechar os olhos novamente para situação, diz que tudo não passou de um sonho. Más Alice, sempre mais sábia que o marido nessas questões, lhe responde dessa forma : "Nenhum sonho é apenas um sonho". Convenhamos que seria muito difícil um casal se separar nas vésperas do Natal com sua filhinha escolhendo os presentes, não é ?. E ainda, seria plausível eles se separarem sem que ''nada'' tenha acontecido de fato ? pois nem ela, nem ele, traíram de fato, eu digo, não se renderam a carne. Porém, algo aconteceu obviamente, algo que balançou e provocou um impacto profundo na relação dos dois. E agora ambos estão de olhos bem abertos perante as tentações do ''mundo exterior''. Eles sabem que existe algo palpável fora das linhas do casamento, e que esse algo tem o poder destrutivo maior do que eles imaginavam. Mesmo com a tal epifania moral ocorrida com ambos, o casal sabe que nada será como antes, o desejo está ali guardado em suas mentes, e eles sabem que ele pode ser fatal.
A última cena se passa numa loja de brinquedos, um lugar que é estranhamente cheio de itens altamente simbólicos. Reparem que Helena caminha perto de um brinquedo chamado "Círculos Mágicos". Seria Kubrick tentando nos dizer que as mensagens ocultas da elite são passadas obscuramente através da nossa cultura popular e não são notadas por aqueles que tem ''os olhos bem fechados'' ? fica o enigma (mais um ..). Outro fato estranho, é que há dois senhores logo atrás de Bill e Alice, conversando. E são os mesmos senhores que estavam presentes na festa de Victor no início do filme. Por que esses homens estão numa loja olhando brinquedos ? seria Nova York uma cidade tão pequena assim a ponto de eles encontrarem Bill e sua família coincidentemente ? bem improvável se tratando de Kubrick. Com certeza o diretor estava querendo nos passar uma mensagem, ou fazer com que nós descobríssemos algo. Será que ambos senhores também fazem parte da sociedade secreta e tem seguido e vigiado Bill e sua família ?. O fato é bem estranho, e ao que me parece a presença desses senhores não é nada gratuita. Más é quase impossível haver tantas coincidências desse porte se tratando de um diretor tão detalhista como Kubrick, um diretor que não colocaria uma pena sequer em seu filme, se não tivesse um significado. Ainda na mesma cena, enquanto Bill e Alice estão imersos em sua conversa particular, os senhores saem de cena, e Helena parece ir na mesma direção deles, e assim não a vemos mais pelo resto do filme. Será Kubrick sugerindo que Helena provavelmente seguirá esse caminho ?. Mais um enigma, dentre tantos deixados pelo diretor. Na minha concepção nada aqui é gratuito, tudo tem um propósito dentro da obra. Pra que passar mensagens de formas ''escondidas'', sutis, quando poderia simplismente focar o filme no drama do casal ?. Se tratando de Kubrick, nada é o que parece ser, inclusive o tema central, que de início parecia ser um genérico drama de casal, más que no final de revelou uma grande crítica não só a ''cegueira social'', más ao mais alto escalão da sociedade.
A trilha sonora do filme talvez seja a mais bem utilizada e uma das melhores que eu já vi. Minimalista, é executada por um piano ''seco'', que parece martelar notas de forma insistente. As notas graves indo e vindo, indo e vindo, sem parar, com o ritmo e a tensão aumentando cada vez mais, e por fim alcançando um ''orgasmo musical'' dos mais impactantes. É um deleite para o espectador. A canção macabra tocada durante a cerimônia religiosa/sexual, é algo que, somado as imagens, torna a obra uma experiência quase sensorial. A atmosfera praticamente te engole nesse momento no filme. Misterioso, o cântico fornece o exato toque sombrio que o público necessita pra sentir o mais puro dos medos. Medo esse sugerido ainda mais por termos a estranha sensação de ouvir as pessoas presentes ali dialogando atrás das máscaras, sendo que não se pode assim ver a expressão facial das mesmas, nos deixando ainda mais intrigados. É uma aula de como utilizar a trilha sonora em prol da obra, sem nunca a tornar cansativa. E há tantos momentos em que a trilha chama atenção .. o que dizer do momento em que há apenas uma nota aguda sendo tocada várias vezes, insistentemente, até atingir um clímax no exato momento mais agudo do suspense ? é algo absolutamente arrepiante, memorável. O roteiro excelente também contribui muito para o resultado final. O filme foi baseado na obra literária de Arthur Schnitzler, escritor austríaco que se correspondia frequentemente com Freud, o pai da psicanálise (no filme, questões relacionadas a isso são frequentemente jogadas sob a tela). E a obra na qual o filme de Kubrick foi baseado, chama-se ''Traumnovelle'' (que traduzida ficaria como ''História de um Sonho'' ou ''Breve Romance de Sonho''). Algo que é tratado com frequência no filme. Más não se engane, ao final nada é apenas um sonho, tudo é real.
Um fato também muito interessante é que Kubrick fez questão de contratar o casal Nicole Kidman e Tom Cruise para seus respectivos papéis, justamente porque sabia que ambos estavam enfrentando problemas conjugais, a ponto de quase terminarem o relacionamento (o que acabou acontecendo depois). O ato do diretor foi tão cruel quanto inteligente, pois ele os coloca numa situação que poderia existir no relacionamento da vida real deles. E é impossível não pensar que no diálogo em que Alice conta a Bill que teve fantasias sexuais com outro homem, que não exista ali um pingo de verdade na reação de Bill/Tom, pois deve ser algo perturbador mesmo, ainda mais com sua mulher (mesmo atuando), falando isso na sua cara. Sobre as atuações, Nicole Kidman está bem, porém sua atuação oscila em alguns momentos muito bons e alguns que não nos convencem pela falta de veracidade (a cena dela bêbada, suas risadas extremamente escandalosas e uma aparente tristeza depois, não convence). Más no geral, é uma boa atuação. Más é Tom Cruise que se destaca. Seu personagem é melhor desenvolvido (há mais tempo pra isso), e ele transmite seus sentimentos com muita veracidade para com o público. Um personagem que por vezes parece apático, más está sempre em busca de algo que não tem. Excelente atuação, uma das melhores de sua carreira. Até Sydney Pollack atua bem (pra mim, algo até surpreendente). Seu personagem é a personificação quase perfeita da hipocrisia. Pollack tem uma atuação muito boa também, mesmo com o pouco tempo em tela. É inegável que, no filme, quase tudo é altamente controverso e/ou subjetivo. Simbolismos apresentados um atrás do outro, incessantemente, todo o perfeccionismo de Kubrick para com esses simbolismos é algo que não tem como não ressaltar. Tanto os símbolos ambíguos (palavras, ex : ''Fidélio''), metáforas psicológicas, espelhos como testemunhas da verdade, o verdadeiro significado além do arco-íris, olhares penetrantes se alternando com máscaras gritando em silêncio o vazio do ser humano, orgias sexuais em rituais de cunho satânico, enfim, não podemos ignorar que tudo isso parece ter um propósito, e Kubrick deixa como o nosso dever, encontrá-los. Nunca ouse dizer que não há nada de Kubrick aqui, há muito mais do que você pensa. Desculpe o trocadilho, más só aqueles que insistem em manter os ''olhos bem fechados'', não enxergarão o que Kubrick quis dizer com ''Eyes Wide Shut''. E é aqui que estão as últimas palavras em forma de cinema de Stanley Kubrick, e isso por si só já valeria a pena.
No fim das contas é uma análise abrangente sobre diversos temas, e nada soando de maneira superficial, rasa, em momento algum. É uma profunda e psíquica análise sobre o que há de mais podre e repugnante no ser humano, e que essa podridão existe no mais alto dos pedestais. Também é uma crítica totalmente pertinente a instituição falha que é o casamento. E obviamente, algumas das grandes marcas de Kubrick estão na obra. Seus olhares sempre frios e analíticos sobre o lado mais obscuro do ser humano estão aqui, como de praxe. Olhares que deixam claro um grande pessimismo por parte de Kubrick em relação a sociedade. Uma despedida mais que honrosa de um grande gênio. ''De Olhos Bem Fechados'' foi um fracasso de público e crítica na época de seu lançamento. Más temos que ressaltar que nem sempre o diretor foi compreendido de imediato. Um grande exemplo é o filme ''O Iluminado'', que rendeu-lhe o troféu ''Framboesa de Ouro'' de pior diretor do ano de 1980 (risos). Hoje, com muita justiça, é considerado uma das maiores obras do horror. Já ''Eyes Wide Shut'', continua até hoje sendo uma obra vista com certa desconfiança, ou desprezo por aqueles que viram e não entenderam a essência da obra, ou só acharam ''chato, tedioso'' (palavras repugnantes se tratando do cinema do diretor). O piano ao fundo de cada cena, o ritual absolutamente hipnotizante, os diálogos assíduos e definitivos que soam impactantes num 1º momento, pois parecem ser de uma crueza que poucos cineastas conseguem transmitir com tamanha veracidade, tudo isso só poderia ser capaz de ser realizado num só filme, se tivesse Kubrick na direção. Saber até onde vai a realidade e o sonho, qual o limite de ''sentir'', foi sem dúvida alguma um estudo exaustivo e reflexivo das relações humanas por parte de Kubrick, que praticamente nos abre uma janela para alma de Bill. Após o final, o diretor quase nos implora, mantenham ''os olhos bem abertos''. E mesmo admirando imensamente, eu não poderia fechar os olhos para o que tinha acabado de assistir. Um retrato intimista e desolador para aqueles que acreditam num conto de fadas moderno. Ao lado de suas muitas qualidades, é algo perturbadoramente real. A grande maioria que execrou o filme na época de seu lançamento, hoje se rende a essa obra singular (que se tornou ainda maior com o tempo). Não, não é um filme que se vê a cada esquina. Isso é cinema, isso é Stanley Kubrick.
''Eu vi algo de caráter brilhante e assustador, andando lado à lado na mesma obra, e não sendo compreendido pela sociedade, sendo execrado pela crítica, com seu diretor rindo da capacidade de não enxergar das grandes massas.''
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