Um específico cenário de “Depois da Chuva”, filme de Marília Hugues e Cláudio Marques, sintetiza boa parte da pequena tragédia, social e particular, de suas inquietas personagens. No caso, uma espécie de usina em ruínas, de intricada estrutura e complexa arquitetura mas abandonada na decadência de suas ferrugens e na parasitose da vegetação que já ocupa o prédio. Nas palavras do anarquista Tales (Talis Castro), um “foguete abandonado”, uma estrutura construída para um empolgante progresso ou inovação cuja decolagem foi subitamente boicotada, interrompida. O que nos sobra não é a ruína de um passado, mas sim a ruína de um presente, de um coito interrompido. Esse é o drama de Tales, de Caio e de todas as demais personagens, aqui representantes de um recorte da juventude brasileira do final dos anos 80: apesar do generoso investimento na campanha das Diretas Já, símbolo de uma verdadeira renovação política e histórica, o que lhes sobra é a decepção de um grande movimento no final ainda insuficiente para a contenção das forças conservadoras do país – as quais, inclusive, ainda martirizadas após a morte precoce de Tancredo Neves. Resta-lhes, portanto, a amarga sensação do retrocesso mesmo com o genuíno desejo pela transgressão.
Caio, vivido pelo intenso Pedro Maia, deseja fazer barulho. Ciente das imperfeições da convenção familiar (a melancolia e alienação da mãe separada do marido) e das repressões da escola, o garoto anseia pelo caos, pela palavra, música ou performance que instiga, provoca e desconcerta. A ele não satisfaz o idílico ou a certa pureza de um “Pra Não Dizer que Não Falei das Flores”; o que lhe interessa é a confusão do rock pesado, a incompreensão das palavras de anarquia mescladas à guitarra ouvida no último volume. A violência do palavrão, a “brisa” da maconha, o protesto da poesia e a volúpia da música. Entretanto, o garoto parece se sentir mais à vontade com a distância. Paradoxalmente, mesmo com seu desejo anarquista de desconstruir e transformar aquela sociedade, Caio prefere estar a parte dela, seja pelo constante distanciamento em relação à câmera seja pelos próprios cabelos com os quais parece esconder o rosto. Os únicos closes em que Caio se sente confortável e mesmo livre são aqueles em que seu semblante mistura-se com as sombras que terminam por quase ocultá-lo (não é à toa, inclusive, que durante o primeiro beijo com a amiga Fernanda os rostos sejam gradativamente “dissolvidos” pelas sombras e trevas do cenário noturno).
O mesmo se aplica aos companheiros anarquistas de Caio. Tales, Sara (Paulo Carneiro) e os outros ainda se mantém ocultos pela rádio, seus melhores closes são igualmente contemplados pelas sombras e seus momentos de maior êxtase são aqueles em que se encontram quase enclausurados dentro de sua “fortaleza”, como no quadro que os contempla reunidos e amontoados no quarto fechado, declamando sua versão musical do “Poema em Linha Reta” de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa). E no final, até a namorada Fernanda (Paula Carneiro, igualmente talentosa), uma das únicas companheiras de Caio mais contempladas pela luz, desafia esse “holofote” ao se jogar nas águas que refletem e quebram essa iluminação ou até ao sair de foco mesmo quando bastante próxima à câmera. Há, portanto, o anseio pela distância e até um certo prazer na condição de proscrito: a sociedade é composta de prisões e os anarquistas escolhem aquela na qual se sentem mais à vontade. A distância, por fim, é quase essencial para a utopia. A perfeição do ideal utópico é quebrada quando o close revela suas imperfeições: o distanciamento é necessário para a manutenção dessa crença. Os heróis tornam-se maiores quando não encaram a câmera durante sua caminhada pelas vielas abandonadas de Salvador.
Dessa forma, embora tenham sensibilidade e até uma certa ternura para com os “anseios revolucionários” de seus protagonistas, Marília Hugues e Cláudios Marques também não deixam de expor as contradições dessa anarquia, frutos de compreensiva imaturidade dos integrantes (mesmo os mais velhos ainda são relativamente jovens) e até de influências da própria sociedade patriarcal que estes tanto desejam derrubar. É o caso do leve machismo ainda existente no grupo. No programa de rádio, é a voz feminina de Sara que personifica a voz ingênua e cética da massa que rejeita a “revolução”; e enquanto Caio e Tales imprimem os folhetos de “O Inimigo do Rei”, Sara permanece fora do processo, dançando solitária e desvairadamente no quarto escuro (e é ela, por fim, quem ainda assume a tarefa quase manual de costura de um vestido).
É interessante, aliás, analisar o papel da mulher no longa-metragem. Embora coadjuvantes, as mulheres parecem representar a maior parte das transgressões mais incisivas da narrativa, seja pela Sara que mergulha intensamente em seus êxtases e devaneios (a supracitada cena da dança), seja pela jovem Fernanda que literalmente se joga no rio ou que ri descaradamente do “discurso gremista” do namorado (e para a transgressão de sua pequena apresentação cênica na escola, Caio e seus colegas assumem o papel da travesti, o homem que assume a feminilidade). O feminino, portanto, é a fonte das mais agressivas ou marcantes provocações (provavelmente pelo tabu que tanto o cerca), e mesmo as mulheres mais conservadoras da narrativa apresentam a sua apaixonada complexidade, como a mãe alienada (evocativa Aícha Marques) que conta a história de Grace Kelly, a atriz renomada que abandona quase tudo por conta de seu amor pelo príncipe de Mônaco – e a própria matriarca, mesmo mergulhada nas convenções domésticas e sociais, revela-se como mulher de intensa fragilidade e carência. No final, os próprios homens parecem não saber lidar com suas companheiras, e é ao lado de Fernanda que Caio inesperadamente passa a agir como um “adolescente normal”, mesmo que por um tempo breve.
“Depois da Chuva”, por fim, é eficaz na seleção de imagens de arquivo, as quais não só indicam a temporalidade da narrativa como acrescentam novos significados ao contexto do longa-metragem, como a pérola do clássico comercial de TV que se utiliza do cenário de protestos políticos para a promoção de uma marca de calça jeans. No caso, a apropriação de um ato de revolta e contestação pela sociedade de consumo reflete a desconfortável contradição sofrida pelas personagens. A despeito do anseio pela revolução, os jovens continuam presos na escuridão do quarto fechado, nas sombras de sua revolta. Tales possui uma arma e pressiona Caio a praticar o tiro, mas ambos miram apenas em garrafas vazias de cerveja; e mesmo o delírio transgressor da festa celebrada no “underground” da cidade não demora a se converter em quase puro niilismo (algo que claramente incomoda o inquieto Tales, o qual enfim constata a solidão infrutífera de sua voz oculta pela rádio). Aliás, é interessante o modo como os próprios clichês da narrativa e de certos cenários intensificam tamanha contradição e desalento: mesmo com o desejo pela mudança, a história continua mais do mesmo. Tudo ainda se resume a uma clássica crônica adolescente, Caio ainda é um clichê e isso só o deixará mais angustiado e confuso.
Por fim (e não recomendo o resto da leitura para aqueles que não viram o longa), a tragédia é intensificada quando o filme opõe o suicídio de Tales com a imagem de arquivo anunciando a morte de Tancredo Neves. A geração do Diretas Já é traída pelas forças conservadoras, dissimuladas pelo falecido presidente mas ainda incisivas e predominantes. E se o político é santificado por sua morte, fortalecendo ainda mais esse conservadorismo, o rebelde torna-se diminuto e quase insignificante na decepção de seu suicídio. No final, ao lado da suposta desconstrução da anarquia permanece a dúvida do que efetivamente pode ser feito, de qual é o melhor caminho a ser tomado e do quão válida será essa escolha. Caio deseja fazer barulho mas desconhece o quanto esse barulho pode ser revolucionário: os aplausos que recebe em sua apresentação escolar não são um sinônimo de sucesso; ao caminhar entre os trilhos de um trem ele poderá ser atropelado. Dessa forma, “Depois da Chuva” ainda consegue ser sensível ao demonstrar a carência de um rebelde ainda de todo desorientado pelas contradições de sua sociedade e de sua própria revolução – e tal como o sofrido pela juventude daqueles tempos, até o amparo materno lhe será friamente negado.
Adendo: Esse texto fará parte de um texto coletivo do grupo de estudos “Cinema da América Latina e Vanguardas Artísticas”, coordenado pela profª Yanet Aguilera Franklin de Matos, vinculado à UNIFESP e cadastrado no CNPq. Inclusive, algumas das conclusões do texto foram resultado das conversas com a professora e com alguns integrantes do grupo. Segue o blog oficial do grupo de estudos: https://cinemalatinoamericano.wordpress.com/
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