“Eu que mando nessa porra! King Kong é mico perto de mim!”
Dia de Treinamento pode ser dividido em dois filmes distintos. Nos seus dois primeiros atos, é uma obra tematicamente complexa, que retrata as dificuldades enfrentadas por um oficial de combate ao narcotráfico, que ciente de que a realidade é bem diferente do que o idealizado por quem o vê de fora, não hesitando em cometer pequenos delitos desde que esses o levem até os “peixes grandes” que deseja ver atrás das grades. E o choque que resulta do encontro desse oficial, Alonso Harris (o sempre ótimo Denzel Washington), e o novato de sua unidade, Jake Hoyt (o também ótimo Ethan Hawke), que logo descobre que as coisas nas ruas não se dividem no reducionista preto e branco que lhe ensinaram na academia. Esse primeiro filme é instigante e bem desenvolvido, um dos grandes policiais da década passada. É uma pena, portanto, que o terceiro ato da narrativa de Antoine Fuqua decida abandonar tudo que construía até ali e resolva investir em um filme de ação que coloca os dois personagens em um jogo de “policial bonzinho” contra “policial malvado”, resultando em uma obra que parece apenas mais um lugar-comum, ainda que extremamente bem realizado, principalmente no que diz respeito à tensão.
Transcorrendo sua trama no período de pouco menos de vinte e quatro horas, Dia de Treinamento traz Hoyt em seu primeiro dia no novo trabalho, passando pelo período de teste/adaptação à unidade do detetive Harris. Isso se revela um acerto do roteiro de David Ayer, já que passamos a descobrir juntamente com o oficial a verdadeira personalidade do personagem de Harris – e em consequencia disso, do próprio personagem de Hawke, claro. E é a dinâmica entre os protagonistas o que Dia de Treinamento apresenta de melhor.
Por mais que saiba estar contrariando seu próprio instinto de ética, Hoyt também reconhece que agir completamente dentro da lei nem sempre resulta no objetivo final de se “fazer justiça”, ao passo que, por mais corrupto que possa ser Alonso – e ele é muito corrupto, não se intimidando em invadir a propriedade de um suspeito e roubar seu dinheiro para financiar um mandado de prisão que irá lhe fornecer ainda mais dinheiro -, ele é eficiente como detetive, afinal, como o próprio personagem de Washington diz, “precisaram fazer cadeias por conta de suas prisões, juízes já deram mais de dez mil anos de pena baseado em suas investigações”. Hoyt aos poucos parece reconhecer em Alonso e em si mesmo a lógica defendida pelo segundo de que “para proteger as ovelhas é preciso pegar os lobos, e para pegar os lobos é preciso outro lobo”, uma consequencia exigida devido ao perigo cada vez maior representado pelos criminosos.
E é sintomático que na melhor cena do filme, após um momento particularmente tenso entre os dois policiais, Alonso reconheça que enxerga muito de si mesmo em Hoyt, revelando que enxerga o mundo exatamente como ele e que também foi um choque perceber que precisaria mudar para fazer seu trabalho. E vale apontar que essa cena por si só justifica todos os elogios às atuações de Washington e Hawke, quando o primeiro, expert em papéis de personagens de moral ambígua enche os olhos de lágrima ao admitir que o que faz “é feio, mas necessário”, deixando transparecer o peso de suas ações atuais sobre os resquícios de sua antiga ética, ao passo que o segundo é eficiente por reagir ao diálogo com um misto palpável de decepção e compreensão ao que lhe é dito.
E é uma pena, portanto, que logo após essa maravilhosa cena o filme abandone tudo que construía até ali e decida enveredar pelo caminho fácil da ação, esquecendo a relação que estabelecia entre seus protagonistas e tornando Alonso o “tira mal” que precisa ser parado antes que cometa seu próximo delito e Hoyt o “tira bom” que é alçado ao papel de mocinho que deve parar seu colega. E por mais que esse ato final da história apresente qualidades dignas de nota – a tensão que Fuqua consegue imprimir em uma cena que se passa durante e após uma partida de pôquer entre Hoyt e três criminosos é absurda, assim como no confronto entre os protagonistas em meio a um bairro comandado por gangues –, é inegável que seria muito mais interessante acompanhar o desfecho da narrativa que era contada até então e presenciar o final do choque de duas personalidades tão distintas e que se descobriam tão parecidas.
Da maneira como se encerra, no entanto, Dia de Treinamento se torna parte de um grupo bastante raro de filmes que mesmo excelentes, acabam deixando o gostinho de decepcionante no paladar do espectador.
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