“Atenção, atenção, não se emocione, trata-se de ficção” – Bertolt Brecht
Dogville é um manancial profundo para análise. Desta maneira, destaquei no meu comentário alguns dos eixos temáticos:
Teatro brechtiano
Em Dogville, filme do genial diretor Lars Von Trier, percebe-se a proposta estética e de conteúdo do teatro brechtiano, na verdade, uma homenagem ao teatro de Brecht. Assim, a tela torna-se palco; dá-se a proposta de se sair da ficção para que a obra sirva de alavanca para os questionamentos da vida real; a encenação adota uma forma teatral, composta por um prólogo e nove capítulos. Esta proposta de distanciamento estimula o espectador a sair da ficção, paralelando-a com a realidade, possibilitando ao espectador a assunção de uma atitude produtiva (caráter política da proposta), pois é preciso fazer pensar e fazer agir. Um exemplo disto no filme é o corte final e suas fotografias tristes, pesadas, lúgubres, que contrastam com a canção de David Bowie – “Young America”- tocando desta forma na formação do estado americano com seus valores e seus conceitos, fazendo uma correlação sobre a representação e a realidade.
O argumento
Seu argumento é inspirado na canção “Jenny e os Piratas”, da “Ópera dos três vinténs”. Trazendo-a a um contexto nacional, remete-nos a canção do Chico Buarque “Geni e o Zepelim”.
A temática é brechtiana, fala sobre exploração, opressão, violência e questionamentos morais. Porém os questionamentos morais não devem ser abordados fora de sua dinâmica sócio-política. As pessoas se deixam guiar e contradizem seus valores morais, levando a um questionamento que chega à raias da loucura, e chegando a surpreender a si mesmos.
Os valores morais são a mola deste enredo, e esta é a mola da nossa própria história.
“Jenny e os Piratas”, da “Ópera dos três vinténs”
Meus senhores hoje eu lavo copos
Faço as camas de todo mundo
Me atiram um micho tostão e eu logo agradeço,
Limpo a mão no avental mas eu sei:
Que um dia eu vou sair daqui.
Certa noite um grito vai se ouvir
E vocês vão perguntar: “Quem foi que gritou no cais?”
Vão me ver lavando os copos e sorrindo.
Vão perguntar: “Por que é que ela sorri?”
Um navio de piratas
Com cinqüenta canhões
Aporta no cais.
Vocês vão me dizer, lave os copos menina,
E um tostão vão me atirar;
Vou guardar o dinheiro, suas camas arrumar, mas eu sei
Que nelas ninguém nunca mais vai se deitar
Só eu sei o que vai se passar
Nesta noite um estrondo vai se ouvir
e vocês vão perguntar: “O que aconteceu no cais?”
Da janela estarei tudo espiando
Vão perguntar:”O que faz ela ali?”
Um navio de piratas
Com cinqüenta canhões
Tudo vai bombardear
A alegria de suas caras vai desaparecer
Porque tudo irá pelos ares
E quando a cidade estiver toda arrasada,
Restará de pé apenas este mísero hotel
“Quem será que da tragédia escapou?”
E durante a noite vão berrar,
Perguntando sem parar: “Quem será que vive ali?”
De manhã, então, eu abrirei a porta.
Vão perguntar: “Quem é esta mulher?”
Um navio de piratas
Com cinqüenta canhões
As velas enfunará
No final da manhã, cem piratas desembarcam
Em silêncio vão avançando
E um por um de vocês eles vão acorrentar
E aos meus pés atirar, para depois me perguntar:
“Quem é que você quer que matemos?”
Haverá silêncio em todo o cais,
Quando ele me perguntar:”Quem é que deve morrer?”
Minha voz então será ouvida: TODOS!
E quando as cabeças rolarem eu direi: Oba!
Um navio de piratas
Com cinqüenta canhões
Pra bem longe vai me levar
O interesse pelos EUA
É importante também lembrar que LVT quando concebeu a obra ainda não conhecia os EUA, ele possuía uma imagem deste país de uma forma midiática. Brecht também alimentava o interesse pelos EUA, analisando esta sociedade super-poderosa. O filme fala sobre a história do ocidente como efeito de tensão e da violência intrínsecas à sua cultura e os seus valores morais.
O simbolismo bíblico
Dogville é uma obra que está totalmente relacionada à tradição judaico-cristã. A Bíblia é uma referência literária, afinal dogville = a cidade do cão. E as equivalências bíblicas não param por aí: cão = Moisés, Grace = Jesus Cristo, Tom = Judas, a história = Apocalipse.
O nome do cão é Moisés, o patriarca dos 10 mandamentos, o homem que recebeu de Deus as regras divinas, e é este cão que vigia e dá nome a cidade. Ele, ao fim do filme, se reconcilia com Grace, afinal ele só rosnou porque ela lhe “roubou o osso”. Metafórico, não?
A graça (Grace) é uma das idéias mais singulares do cristianismo, é um conceito típico do seu pensamento. Grace é sacrificada, porém cultiva e exercita até não poder mais a idéia do amor. E o amor pregado por Cristo supera e transcende a idéia da justiça (Moisés).
Já o personagem Tom, por pudor ou convencimento moral, canaliza o seu impulso sexual em forma de traição. Ele é um grande falsificador, se utilizando do arcabouço de racionalidade e sofisticação. Todos os homens de Dogville têm relações sexuais com Grace, ele é o único que fica só no beijo. Ora, o beijo é biblicamente relacionado à traição.
Daí vê-se a tensão em meio a identidades e diferenças, judaísmo X cristianismo, Grace X cão, Jesus X Moisés: amar ou temer a Deus? O ideal de amor cristão coloca que não vem para negar a Lei e sim para reformá-la. Já o ideal judaico de justiça baseia-se no temor a lei e na lei do temor, como forma de equilíbrio e compensação. Em Dogville , reedita-se a oposição entre as duas mais antigas e antagônicas disposições morais conhecidas: o código de Hamurabi e a parábola do machado e do sândalo.
Finalizando...
É uma obra – prima longa, que possui várias camadas de interpretação, e não tenho interesse de me alongar num mero comentário, deixo aos experts este papel. Faltou falar o filme enquanto história do Ocidente, das alegorias, das relações de poder, o “bem comum”, sobre esta fábrica de doentes: sadismo, masoquismo, machismo, perfídia, venalidade, violência do “bom cidadão”... e outras tantas camadas.
O filme não se refere apenas à sociedade americana. O filme é sobre o ocidente, sobre as “cidades de Moisés”. Dogville é aqui e agora.
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