Dogville é uma obra extremamente pessimista, de contexto social (leia-se “american way of life”) deturpado e bem diferente do que é comumente divulgado pelas grandes produções norte-americanas, além de ser um divertido divisor de opiniões no que se refere às escolhas estéticas. Mas nada disso interessa ao diretor. Muito mais focado na relação entre seus personagens e em contextualiza-los nas simbologias clássicas e religiosas, Von Trier cria aquela que pode ser considerada seu filme mais agressivo.
Como é recorrente na obra do dinamarquês, o principal personagem é o próprio espírito humano feminino. Este personagem, que povoa todas as grandes formas de expressão artística do cineasta, se estabelece como “labirinto” e “minotauro”, jamais sendo colocado na posição tradicional do conceito de “herói” – apesar de estes serem, indubitavelmente, protagonistas. Basta que observemos melhor personagens como Selma Jezkova (Dançando no Escuro), Bess McNeill (Ondas do Destino), Ela (Anticristo) e a própria Grace.
O conceito de “labirinto” pode representar, entre várias outras leituras, a racionalidade de uma sociedade calcada nas retrógradas leis do masculino. Um tempo/espaço “castrador”, opressor e destinado a domar a fera feminina, o “minotauro” (a ideia clássica do espírito feminino: a Natureza, a paixão, o impulso – vide “Medeia”), que se mostra pequeno diante dessas forças anestésicas. Gradualmente percebemos que os até então pacatos cidadãos de Dogville (o labirinto) são capazes de prender e oprimir Grace de várias maneiras extremamente cruéis, seja com palavras, ou olhares que “transcendem as paredes”, ameaças e até ações físicas radicais (os grilhões e os constantes abusos sexuais).
Inicialmente disposta a abraçar a doutrina cristã do Novo Testamento – e sua ideia de perdão – Grace, cada vez mais isolada e se deparando com becos sem saída, gradualmente vai despertando seu monstro instintivo (o Minotauro, a força da Natureza em sua forma mais violenta), retornando ao seu verdadeiro poder de julgamento, representado pela figura do pai (de certo modo, o Deus punitivo do Antigo Testamento que acolhe e reeduca o Messias do Novo Testamento). A protagonista desperta de uma espécie de transe e alça voo rumo a um poder que havia esquecido que possuía, e então, após carregar sua Cruz (a coleira com a roda de ferro), ela lança sobre todos não o perdão pelo amor, mas um dilúvio de balas e sangue (o final do filme é um dos mais fortes já criados pelo cineasta).
Curiosamente, a força do minotauro é intrinsecamente ligada ao “Teseu” (herói disposto a matar o monstro do labirinto) de sua natureza. A mulher em Von Trier consegue ser o monstro e o herói, dividindo um mesmo corpo – e aqui está a “problematização”: tendo dentro de si elementos tão díspares, o verdadeiro monstro acaba por se transmutar no próprio labirinto. Não é a criatura, mas o sistema estabelecido (o racional). Conhecedora de todos os defeitos da alma humana dada a sua condição de Messias, Grace é capaz, mesmo querendo acreditar que não, de “ver através das paredes desse labirinto” e perceber todos os monstros que ali habitam. Sua tentativa de tornar-se uma habitante daquele local (pontuada pelas mudanças de seu figurino) soa patética e fadada ao fracasso, e gradualmente seu figurino original vai reassumindo posição de destaque. A reação de Grace, frente a esses obstáculos, é, portanto, natural e compreensível: “Só pare de matar quando ela parar de chorar”, diz Grace em certo instante, num dos momentos mais fortes e agressivos que exemplificam perfeitamente o “olho por olho, dentre por dente”, do agressivo Antigo Testamento.
Revertendo padrões estéticos e bebendo muito mais nas infindáveis referências do teatro (Brecht e Artaud, em especial), Lars Von Trier elimina o cenário e alguns recursos técnicos, numa espécie de evolução do projeto DOGMA 95. Escolhas artísticas à parte, Dogville é um dos maiores exemplos sobre a mesquinhez e a hipocrisia humana, além de ser um belíssimo exemplar de cinema poético.
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