- “Me abrace”.
- “Eu não posso”.
Tim Burton não cresceu. Permanece aquela mesma criança “estranha” que admirado lia os contos de Poe e assistia os filmes de terror protagonizados por Vincent Price. E é quando assume isso e se permite abraçar essa criança interior que o cinema de Burton se torna mágico. Não à toa, suas melhores produções são os contos de fadas que misturam sua imaginação paradoxalmente doce e sombria, com personagens tão deslocados do mundo que o cercam quanto a própria criança Burton. O cinema de Burton assim parece precisar de um quê autobiográfico, pois quando o é, o resultado são pérolas do mais alto valor, como sua obra-prima máxima, esse Edward Mãos de Tesoura, ou “acerto de contas” com seu pai, o maravilhoso Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas. Quando não possui isso, resta o apuro visual que não se sustenta por si só, filmes sem coração, Alice no País das Maravilhas e similares.
Coração é a palavra-chave aqui. O Estranho Mundo de Jack é baseado nos personagens criados por Burton, mas não dirigido por ele, e transborda paixão. O belíssimo livro de poemas escrito e ilustrado por ele, O Triste Fim do Menino Ostra e Outras Histórias, também. Edward Mãos de Tesoura idem. E essa paixão se espalha. Se os parceiros-fetiche do cineasta, o ator Johnny Depp e o compositor Danny Elfman parecem pouco a vontade em seus filmes sem coração, aqui são mágicos. É embalado pela trilha cheia de acordes fantasiosos de Elfman que Depp encarna o personagem-título, criado por um cientista (interpretado por Vincent Price, homenageado mais uma vez por Burton) que, isolado em seu castelo de filme de terror B destoante do subúrbio de casinhas coloridas e donas de casa do american way of life, morre antes de concluir seu “filho”, deixando-o com tesouras afiadas no lugar das mãos. Claro que, como um bom personagem de Burton que é, Edward conhecerá o outro lado de seu mundo (ou um outro mundo?), sendo descoberto pela vendedora do Avon, Pegg (Dianne Wiest), e levado para fazer parte de sua família, uma das habitantes das casinhas coloridas.
É aí que o olhar de Depp, que hoje em dia parece incapaz de atuar dessa maneira, sem gesto histriônicos, se torna uma atração à parte: maravilhado, assustado, descobrindo, temendo, o olhar de uma criança que sai de casa pela primeira vez. Uma criança que descobre que o mundo é cruel com o diferente. As casinhas coloridas não compreendem Edward, o diferente, então logo o excluem – não antes de acolhê-lo, claro, por que assim o efeito de excluir será mais pesado -, o acusam, o temem. Mas a mesma criança descobre que, uau, o mundo é lindo. Tão lindo quanto Winona Ryder no auge de sua beleza e talento dançando em meio à neve criada por Edward (ainda a imagem mais linda criada por Burton em sua carreira, talvez rivalizada apenas pelo final de Peixe Grande, um mar de lágrimas pronto para ser derramado). Mas nos contos de fadas de Tim Burton o “viveram felizes para sempre” não existe. Neles a dor nos define tanto quanto o amor, daí que todos os “heróis” burtonianos precisam de uma para encontrar o outro – Jack precisa quase arruinar o Natal para aprender a que seu lugar é o Halloween, ao lado de Sally, seu amor; Will Bloom precisa ver o pai à beira da morte para apreciar a beleza de suas histórias; até o Batman precisa ver os pais serem assassinados para ser, bem, o Batman. Daí que o próprio Edward descobre que seu lugar é no mesmo castelo escuro em que nasceu/foi criado.
Por que lá ele não é diferente. Lá ele apenas é. E assim pode viver o resto da vida em meio às sombras e flocos de neve de suas esculturas. Em meio ao terror que assusta e à beleza que encanta. Em meio à dor de não ver mais seu amor, Kim (a personagem de Winona), e ao gosto doce de eternizá-la enquanto durar em uma escultura só sua. E por isso, talvez esse seja o final mais paradoxalmente belo e triste filmado por Burton. Por que ele é todo idealizado, e a idealização é das coisas mais belas e tristes que há. Edward e Kim são condenados a viverem “tristes para sempre”, por que o amor será sempre idealizado, nunca consumado. Mas também são “felizes para sempre”, por que se lembraram sempre um do outro assim, idealizados, ou seja, nunca poderão ver o “lado podre” do amor, por que um amor idealizado é SEMPRE perfeito. Por que é a cabeça daquele garoto assustado jogado na tela da maneira mais explícita, talvez: a segurança de seu interior sombrio ao invés da beleza que apavora no mundo lá fora.
Dessa forma, Edward e os outros filmes marcantes de Burton se tornam não uma tentativa de exorcizar seu interior, como é comum em outros cineastas, mas uma tentativa de manter-se em contato com ele. Por que é no interior que está o coração. E o cinema de Burton precisa de coração para funcionar.
Meu Burton e meu Depp favorito. Obrigado pelo excelente texto, Pedrão, me fez rever o filme depois de muito tempo. Também acho a cena da dança na neve a cena mais bonita do diretor em toda a carreira, mas a cena da morte de Price, com Edward destruindo as mãos que o completariam me dói no peito só de lembrar.
Alan, se eu que tenho boa relação com meu pai fui destruído pelo Peixe Grande imagino você.
É uma lavagem de alma fudida do Burton.
Valeu, Cristian 😎
Bem lembrado, ótima cena mesmo, e bastante simbólica como vc mesmo disse.
A cena do Edward tirando a vida de seu criador é realmente de marejar os olhos...