Você está assistindo àquela sua série favorita. Num determinado momento o seu personagem do coração morre. Você entra em depressão, até chororô rola. Por causa de algo que não existe. Se não existe por que você se apega tanto chegando ao ponto de sofrer pelo destino de um ser inexistente e irreal?
Essa é a indagação gerada pelo filme "Ela", de Spike Jonze. No filme, Theodore (Joaquin Phoenix), um escritor solitário, compra um novo e moderno sistema operacional de múltiplas plataformas que foi desenvolvido para interagir da forma mais complexa com o dono. O tal sistema é completamente auto-suficiente, feito para atender a todas as necessidades do usuário, tendo praticamente "vontade própria". Autonomeando-se "Samantha" (voz de Scarlett Johansson), o OS começa a fazer parte integral da vida de Theodore, e este se pega apaixonado por ele. Ou, no caso, ela.
A premissa pode parecer absurda, mas tem colunas de fundamento fortíssimas. Vivemos uma época onde eletrônicos são verdadeiros apêndices dos nossos corpos, estamos 24 horas por dia conectados com outros e com nós mesmos. No caso de relacionamentos, já está mais que batida a ideia de que interagimos mais pelo computador/celular do que "ao vivo e à cores". Aquilo que servia para unir, desune.
Jonze pega então essa ideia e eleva ao máximo, com uma pessoa se apaixonando pela máquina. Voltemos para a pergunta inicial desse texto. Por que nos apegamos a algo que não existe? O que diabos é o amor? Ao contrário do que pensamos, "amor" não está no "corpo" do outro. Está nas nossas cabeças. Química cerebral, hormônios, uma porrada de ligações elétricas dentro dos nossos crânios são transformados nesse sentimento avassalador. Então por que não amar algo que foi desenvolvido - no caso do filme, literalmente - para você? Como resistir a isso?
Na situação de Theodore, tudo é ainda mais tentador. Ele tenta superar o divórcio com sua ex-esposa e paixão de infância, buscando alguém para ser sua "válvula de escape". Encontros casuais, sexo virtual, qualquer coisa que tire da sua cabeça a ex (interpretada por Rooney Mara) e o arranque da constante solidão. Então aparece Samantha, a criatura (se é que podemos chamá-la assim) perfeita. Engraçada, atenciosa, carinhosa, afável... E Samantha suspira. A máquina suspira. Uma ato puramente humano, mas já desenvolvido para assim parecer, como todos os questionamentos feitos por ela que a tornam ainda mais humana.
Se isso ainda parecer ilógico para você: quantas pessoas ao seu redor não se relacionam virtualmente? Namorar pela internet é prática comum nos dias de hoje, e nada mais é do que amar uma imagem virtual, uma voz transformada em sinais. Nada diferente de Samantha. Estamos tão desesperados por uma fatia de afeto que nos apegamos àquele que nos der essas famigeradas migalhas. Somos seres solitários querendo fugir disso sem medir o preço.
Se o conteúdo de "Ela" já é suficiente para fazer um grande filme, ainda temos as atuações excepcionais de Phoenix, que passa o filme inteiro praticamente sozinho, já que "contracena" com uma voz. Johansson fez um trabalho louvável por conseguir transformar Samantha numa personagem tridimensional sem nem aparecer em cena. Também temos uma singela Amy Adams, melhor amiga de Theodore, que está no fim de um relacionamento (humano mesmo). É interessante notar que, quanto mais o relacionamento (novamente, humano) de Amy vai afundando, mais o de Theodore (virtual) vai crescendo.
Com trilha sonora bela, direção de arte maravilhosa (a cor rosa está por toda parte, casando com o lirismo melancólico do protagonista) e com o Oscar de "Melhor Roteiro Original" nas mãos, Jonze cria um filme absolutamente moderno, criativo, instigante, empolgante, apaixonante, um clássico instantâneo e, acima de tudo, lindo. Muito lindo.
Belo texto, Gustavo.
Esse filme também me pegou de jeito e trouxe uma identificação enorme.
Ótima crítica man!
Achei muito interessante o momento em que você faz a analogia dos aparelhos eletrônicos como apêndices. Realmente, a tecnologia de certa forma fundiu-se ao ser humano de uma tal forma orgânica que só a ideia que um dia poderíamos ficar sem ela nos faça crer num possível apocalipse tamanha dependência que foi criada em torno dela. E essa sua analogia me remeteu de certa forma ao Cronenberg junto ao seu Videodrome e ao conteúdo do filme eXistenZ que, ao meu ver, dialogam se não diretamente com o filme do Jonze ao menos em ideia. Fazendo outra comparação( me empolguei rs), desta vez com filmes de ficção científica da década de 70 e 80, você percebe a diferença que se tinha quanto ao que o ser humano esperava dessa junção entre homem e máquina, que era algo mais mecânico, por assim dizer. Percebemos, de fato, que o passar dos anos revelam apenas que essa proximidade vem se tornando muito mais que física e principalmente psicológica. E não sei dizer se é bom ou ruim...
Um filme que deixa bem claro que Cinema deve ser sentido e não apenas assistido. Belo texto, por sinal.
Obrigado gente! Desculpa a demora, ando mega ocupado ultimamente. E Caio, também não sei dizer se isso é bom ou ruim...