“Eu amo dinheiro. Eu odeio você. Eu odeio a mim mesma."
Se a Estátua da Liberdade recebia de frente um jovem Vito Corleone em sua chegada à Ilha Ellis no começo do século XX, pronta para abraçar o futuro dono de um império erguido as custas do tal sonho americano, aqui Ewa Cybulski (uma assombrosa Marion Cotillard) é recebida de costas, uma pária que terá sorte se em sua luta pelo mesmo sonho americano, se mantiver viva ao fim.
Não que Ewa queira construir um império. Esse primo distante do Poderoso Chefão, afinal, é um filme de James Gray, então sabemos que tudo é pela família - como em algum momento foi também nos de Coppola. Ewa quer uma nova vida depois de perder os pais na guerra que assola sua Polônia natal, mas para isso precisará juntar dinheiro para tirar a irmã, Magda (Angela Sarafyan), da Ilha Ellis, onde ficou retida por estar doente e corre risco de deportação. Mas a quem recorrer? A família, em Gray, as vezes oprime mais que qualquer autoridade da lei, então os tios que aguardavam a moça lhe viram também as costas ao saber de sua conduta desrespeitosa no navio que a trouxa a Nova York, deixando-a sozinha e dependente de Bruno Weiss (o sempre gigante Joaquin Phoenix), que mesmo se apaixonando pela protagonista, não se importa em explorar o corpo dela na prostituição para conseguir dinheiro.
Ewa é a primeira protagonista feminina de Gray e logo descobre o peso de o ser. Ninguém se importa com a natureza do que aconteceu no navio, apenas com uma tal honra manchada da garota que como único pecado cometido teve o corpo lindo (e sabemos que nem precisaria o ser para isso) e estar ao lado de homens que nem merecem ser chamados de humanos. Assim como ninguém se importa em condená-la a continuar os abusos (e são abusos, já que a garota jamais retira prazer do sexo), dessa vez por dinheiro, para se manter alimentada - literalmente e figurativamente, quando pensamos na esperança de rever a irmã. Se Mark Wahlberg ou Joaquin Phoenix em outros filmes do diretor brigavam com socos e tiros para mostrar a revolta com condenações absurdas que lhes eram dadas por erros passados, aqui Marion Cotillard resume sua luta a continuar em pé, ainda que sua condenação pareça pior ainda por ter nascido com ela, nunca lhe foi dada uma chance.
Assim, dói um corte simples, mas impressionante que Gray faz em dado momento após introduzir Emil (Jeremy Renner), o mágico primo de Bruno que se interessa por Ewa e também parece aos poucos despertar o interesse dá garota, criando assim um novo triângulo amoroso em Gray após a obra-prima Amantes: a personagem de Cotillard parecia, finalmente, vislumbrar um futuro melhor - "Não percam a fé. Não percam a esperança. O sonho americano está esperando vocês.", diz Emil em sua apresentação - e guardar com carinho uma flor como símbolo de esperança, na cena seguinte, então, vemos essa mesma flor murcha antes de vislumbrarmos a garota com os olhos sem vida após se ver presa, novamente, na prostituição para conseguir o dinheiro que precisa.
Os olhos de Cotillard... Como podem dizer tanto? A atriz, geralmente dona de performances ótimas, aqui entrega sua grande atuação, revelando-se um rosto tão expressivo quanto o de grandes atrizes do cinema mudo, como Janet Gaynor, Lillian Gish ou mesmo Maria Falconetti. O que não surpreende, já que o filme de Gray parece emprestar muito dos grandes filmes estrelados por elas, não sendo errado dizer que Era Uma Vez em Nova York é herdeiro direto de melodramas clássicos, tendo muito de Lírio Partido na relação tóxica e mortal entre Ewa e os homens que a cercam e a questão da culpa vista em O Martírio de Joana D'arc. Cotillard não precisa de cenas que chamam prêmios, é impressionante como sua expressão corporal, a maneira como entre lágrimas fala uma frase e suas mãos nas de Phoenix, sugerem todo um mundo de sentimentos em uma cena perto do fim, mesmo sem vermos seu rosto. E nunca é fácil ofuscar o ator-fetiche de Gray, em mais uma de suas atuações viscerais, que parecem jogar pra fora dores inimagináveis - o que faz sentido, já que o personagem convive com sentimentos conflitantes, como explorar a mulher que ama, o desejo de ser absolvido por ela, ainda que reconheça sua culpa. Dois intérpretes gigantes, que são complementados por um Jeremy Renner que traz vivacidade a suas cenas, sem jamais retirar o peso dramático delas. Um trio e tanto.
E há Gray, claro. É impressionante como o cineasta consegue criar cenas tão esteticamente bonitas e conferir-lhes peso dentro da narrativa, jamais apelando para o exibicionismo puro. O peso que ele traz para cenas como um abraço entre irmãs visto de longe, ignorando a força catártica do gesto após um filme inteiro construído na ausência disso, é assustador e também corajoso. Ausência física, claro, porque Gray é mestre em colocar a família lá mesmo quando ela não está (lembremos dos retratos na parede, encarando o primeiro beijo de um casal em Amantes), sendo assim, tal qual o patriarca de Os Donos da Noite, a irmã de Ewa é quem norteia os acontecimentos do filme. Daí que quando o tal abraço acontece (novamente, longe do espectador, porque é o momento mais particular de todo o filme, a câmera não tem direito de se colocar diretamente ali), o filme chega ao fim, a história a ser contada aqui acabou, ainda que as histórias dos personagens, não.
Sobra então o derradeiro plano de Era Uma Vez na América, talvez o que de mais lindo Gray já filmou (e como filmou planos lindos): através do posicionamento bem escolhido de sua câmera, o cineasta transforma a tela em um quase split screen e nos mostra Ewa e da irmã e de Bruno. Dois rumos. Um finalmente iluminado por uma luz promissora, outro continuando com o sépia que banhou o filme até ali. Um vislumbrando um futuro que deixe o passado para trás, outro de volta ao passado que permanecerá sendo presente e futuro, abraçando os erros cometidos e lidando com suas consequências. Era uma vez uma obra-prima.
O cara tava tão louco que não sabia mais se estava escrevendo sobre Era uma Vez em Nova York ou Era uma Vez na América. HAHAHAHAHAHA 😋
Hahahahaha o que a preguiça de revisar não faz pqp