Era Uma Vez no Oeste (1968) - Review
Celebração genial da morte pela vida
Para compreendermos melhor a extensão do impacto do clássico "Era Uma Vez No Oeste"(C'era una volta il West, 1968) é necessário um breve comentário sobre o contexto no qual o italiano Sergio Leone esculpiu sua obra-prima máxima. No começo da década de 60, tanto o gênero dos faroestes americanos quanto a indústria cinematográfica italiana encontravam-se em decadência. Esgotados após a exploração intensa na televisão e cinema estadounidenses, não haviam mais histórias a serem abordadas pelos faroestes, e os principais cineastas do gênero, como John Ford, não mais produziam seus grandes filmes. Ao mesmo tempo, do outro lado do oceano o Cinema italiano atravessava uma grave recessão, com a maior parte das equipes técnicas nas ruas procurando emprego em meio à uma crise criativa na indústria.
Sergio Leone resolveu ambos os problemas de uma vez só, com o lançamento de "Por Um Punhado de Dólares" (Per un pugno di dollari, 1964). Este remake de "Yojimbo" (Yōjinbō, 1961) do mestre japonês Akira Kurosawa, deu início à clássica "Trilogia dos Dólares" com Clint Eastwood, que revitalizou o cinema italiano e ramificou o gênero americano dos filmes de cowboy em uma nova espécie, os "Spaghetti Westerns". Porém Leone permanecia convencido de que o faroeste estava com os dias contados. Ao final da década de 60 sua mente sempre inquieta falou mais alto, e o diretor sentiu que era hora de partir para novos projetos e renovar sua carreira. O filme escolhido para tal chamava-se "Era Uma Vez Na América" (C'era una volta in America), mas este só veria a luz do dia em 1984. Ocorre que o cineasta precisava de verba para levar à cabo sua idéia ambiciosa, mas o estúdio, de olho nas gordas bilheterias dos faroestes de Leone, só produziria filmes de outros gêneros caso o diretor entregasse antes mais uma aventura de cowboys.
E foi nesse cenário improvável de ganância x desejo artístico que nasceu "Era Uma Vez No Oeste", um dos maiores westerns de todos os tempos. Concebida por Leone junto com Dario Argento e Bernardo Bertolucci ("O Último Tango em Paris", 1972), a história acompanha o pistoleiro sem nome apelidado de "Harmonica" (Charles Bronson). Quando o caminho de Harmonica se cruza com o da viúva Jill McBain (Claudia Cardinale), o pistoleiro une forças com o bandido Cheyenne (Jason Robards) para protegê-la e desvendar uma série de assassinatos que parecem estar relacionados com a construção da ferrovia no local. Ambos partem então ao encalço de Frank (Henry Fonda), impiedoso matador contratado pelo dono da ferrovia Morton (Gabriele Ferzetti). No entanto, a proteção de uma mulher não parece ser a real motivação de Harmonica, e aos poucos sua missão vai se revelando muito mais pessoal do que aparenta.
Em muitos sentidos este filme se assemelha ao antecessor "Três Homens em Conflito" (Il Buono, il Brutto, il Cattivo, 1966), outra obra-prima de Leone. Sobretudo no que diz respeito ao trio de protagonistas, Harmonica, Cheyenne e Frank, que simbolizam respectivamente os papéis do Homem sem Nome (Eastwood), Tuco (Eli Wallach) e Angel Eyes (Lee Van Cleef). No entanto, o cineasta assegurou que tais semelhanças fossem apenas superficiais, evitando requentar clichês do gênero para compôr uma obra inovadora, com um tom melancólico que se contrapõe ao aspecto triunfal de seus filmes anteriores. Isto ocorre porque aqui Leone não quis exaltar as virtudes dos cowboys ou mostrar o nascimento da América, mas sim traçar um paralelo da morte do Velho Oeste com a morte de seu amado gênero dos westerns.
Por conta deste diálogo com a metalinguagem, inovador em uma época de raros filmes sobre o Cinema, Leone foi considerado pelo filósofo francês Jean Baudrillard como o primeiro diretor do cinema pós-moderno. Desta forma, "Era Uma Vez no Oeste" dilui em sua composição as melhores características dos faroestes, homenageando o gênero ao mesmo tempo que serve de veículo para as críticas de Leone ao estilo de vida norte-americano. Não à toa, os mais fortes argumentos desta obra orbitam ao redor da ferrovia, tema central do filme, que traz consigo a promessa de civilização e ao mesmo tempo a morte dos cowboys. Leone pinta um quadro deste exato instante em que o Velho Oeste dos atiradores sofre a mutação para o Novo Oeste do destino manifesto, onde só há espaço para ganância e corrupção.
Nesse sentido, o empresário Morton é aquele que personifica a ferrovia em si. Portador de uma doença óssea, Morton se locomove apoiado em estruturas especiais no teto de seu vagão opulento, em uma simbiose metafórica com o próprio trem. Mas esta vulnerabilidade é apenas física, pois na realidade o empresário é aquele que detém o maior poder neste novo mundo: o dinheiro. É isto que submete o cruel pistoleiro Frank às suas ordens, consciente de que o poder de seus revólveres não mais se compara ao do capital. Leone reserva compaixão para Morton, apontando que seu real objetivo é tão singelo quanto contemplar o mar antes de morrer, mas não para Frank. A bela interpretação de Gabrielle Ferzetti colabora para dar vida à um personagem digno de pena, ao passo que o trabalho de Henry Fonda compõe um vilão com um ar permanente de loucura e brutalidade, guiadas pela racionalidade que o torna tão perigoso. Mais uma maneira do diretor chocar o público, acostumado a ver Fonda somente em papéis de herói, e outro indício da ruptura de Leone com a imagem americanizada do cowboy bom moço.
Como Frank, Harmonica e Cheyenne também são relíquias de uma espécie que não mais pode sobreviver neste mundo moderno, mas diferentemente do vilão, estes aceitam seus destinos. Para Harmonica o progresso pode ser inexorável, mas sua sede de vingança constitui um objetivo muito mais pragmático que ainda pode ser resolvido do velho modo: à bala. Charles Bronson compõe um personagem de poucas palavras rodeado por um véu de mistério, que esconde bem seus motivos até os minutos finais do filme, mas sem nunca deixar de transparecer uma ironia misturada com uma ponta de tristeza em seu olhar. Um protagonista marcante, que preenche a tela com o som fantasmagórico de sua gaita, por onde expressa sua alma. Cheyenne, interpretado com a simpatia de Jason Robards, também é de suma importância para a trama, servindo por vezes como o alívio cômico que impede a saturação do drama.
A única que se adapta às mudanças é Jill McBain, na pele da estonteante Claudia Cardinale, que utiliza sua sensualidade como recurso para navegar entre o velho e o novo mundo. A personagem é uma inovação na filmografia de Leone, que até então não havia escrito um papel feminino multidimensional que fugisse à regra "santa ou prostituta" de seus filmes. Para explorar bem os papéis principais, Leone divide o tempo entre eles igualmente, com o quarteto protagonista ganhando até mesmo os próprios temas musicais compostos pelo lendário Ennio Morricone, uma sinopse musical das personalidades de cada um. Os famosos closes, marca registrada de Leone e dos faroestes em geral, também enquadram os rostos dos personagens de forma a ressaltar todas as suas nuances, utilizando a face de atores talentosos como uma rica fonte de informações contidas em suas expressões e olhares.
Dessa forma, o cineasta equipara os rostos do elenco às paisagens naturais do Velho Oeste, que aqui são retratadas com maestria por Leone e seu diretor de fotografia Tonino Delli Colli. Consciente de que o ambiente é sempre o personagem principal de um faroeste, o diretor exercita sua paciência e talento para pintar as mais belas imagens e capturar em filme todo o espírito do gênero, fazendo pelo Cinema italiano o mesmo que o sensei Akira Kurosawa fez pelo Cinema japonês. A maior parte do longa foi gravada em Guadix, na Espanha, mas o cineasta levou a produção para gravar cenas importantes em Monument Valley, no Colorado, local povoado pelo espírito de incontáveis gerações de cowboys na História. Sem medo de exercitar sua Arte (e paciência), o diretor se demora em capturar as paisagens e os atores, construindo uma grande tensão que é apenas quebrada por rompantes ocasionais de violência bruta. O efeito atingido não é apenas a criação de expectativa e verossimilhança, como também um sentimento de nostalgia que paira sobre toda a obra, ao focar cenários de faroestes clássicos pertencentes à tempos passados.
Tais cenários são povoados com grandes sets, entre eles uma cidade cenográfica que sozinha custou mais que todo o orçamento de "Por Um Punhado de Dólares", testamento da cinematografia habilidosa de Leone ao montar cenas complexas. Sob seu comando perfeccionista, o Velho Oeste volta novamente à vida que floresce em cada pequeno detalhe dos sets. Mas a exuberância de seu filme não é apenas visual. Sergio Leone dizia que "o som é 40% de um filme", e aqui o diretor põe em prática suas palavras. Além da trilha sonora monumental de Ennio Morricone (composta antes do início das filmagens), que mais uma vez faz uma dobradinha muito bem sucedida com cineasta, dessa vez tão importante quanto a música são os sons ambientes. O diálogo entre som e imagem funciona para aos poucos revelar informações, como quando os grilos se calam, sinal claro de que a ameaça ronda os personagens. É assim que esse mundo é mostrado como um organismo vivo e real que se afasta de uma concepção artificial de um produto cinematográfico
Não se fazem mais filmes como estes, pois não existem mais cineastas como Leone. Esta não é uma constatação pessimista, apenas significa que o Cinema e o público evoluíram, e diretores com a paciência e o talento artístico do italiano deram lugar à profissionais com um estilo "fast-food" capaz de produzir cultura em massa. Mas a nostalgia é um sentimento transitório de amor ao passado com a referência do presente, e também era algo que Leone sentia diante da morte lenta dos faroestes que tanto amava. A ferrovia aqui é a figura escolhida por ele para representar a chegada do capitalismo tecnológico que matou os cowboys e causou a involução do Oeste, tanto o real quanto o cinematográfico. Ao comparar diretamente este tema interno do filme com o contexto do período no qual foi lançado, o diretor expressa o tema externo de como a era dos grandes Westerns americanos chegou ao fim diante do progresso inexorável do Cinema.
O resultado é um filme pessoal e magnífico, uma "opera western" nostálgica que também foi pensada por Leone para ser o seu adeus aos faroestes. Ainda que o cineasta tenha retornado aos desertos empoeirados em "Quando Explode a Vingança" (Giù la Testa, 1971), é este filme que representa sua homenagem suprema ao gênero, recheado de referências à outros clássicos mas imbuído da criatividade e personalidade de um dos maiores diretores da História. Sua relação com os atores, compositores, roteiristas e etc. não era vertical, mas sim de cooperação, e todos lhe retribuem com lealdade e dedicação evidentes no conjunto da obra. Tudo isso em mais de 150 minutos de duração, que jamais cansam o espectador por conta da enorme atenção do diretor ao ritmo na edição final. Ocupado em fazer deste filme a eulogia definitiva dos faroestes, talvez Leone não soubesse que sua obra teria o efeito inverso de uma inscrição em uma lápide, ao imortalizar o gênero em toda a sua glória e inspirar incontáveis gerações futuras, em um épico que celebra a morte, mas floresce cheio de vida.
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