"Na história, como na natureza, a podridão é a fonte da vida” - Karl Marx e Eduardo Galeano
A Palma de Ouro, prêmio francês em Cannes, costuma ser político, e diferentemente do Oscar, isso não deve ser entendido negativamente. Se quando falamos que o "filme X ganhou por ser uma premiação política" em Hollywood, é uma atribuição negativa de uma tentativa clara de não premiar algum outro filme por exposição deste a algumas coisas que a sociedade conservadora estado-unidense não quer mostrar ou ver. Ao se tratar de Cannes premiando por política, temos absolutamente o inverso: em 2003 e 2004 quando Elephant e Fahrenheit 9/11 ganharam a Palma, estava claro a crítica ao fortalecimento da era Bush, seu militarismo exacerbado e a cultura do medo em voga; em 2013, na vez de O Azul é a Cor Mais Quente, o homossexualismo, já aprovado como casamento oficialmente aceito em diversos países e futuramente em outros, mostrava a sua face. Mas o que dizer quando Dheephan e este Eu, Daniel Blake são os dois últimos vencedores? Tecnicamente: o mundo está uma merda, de novo.
Se você é alguém que trabalhou a vida inteira, ou está tentando trabalhar honestamente ou pior, é um imigrante em um país europeu que outrora colonizou meio mundo, bem, seu bem-estar social corre perigo.
Daniel Blake é um ultrapassado, mas seu coração ainda bate (não como deveria, opa), não sabe instalar computadores, mas sabe arrumar uma caixa d'água estragada, não sabe ser indiferente às pessoas, mas sabe amá-las, não sabe odiar; Dan (como é carinhosamente chamado) tampouco sabe como pode um cidadão da China falar ao vivo e a cores com um cidadão na Inglaterra, mas saberia fazer uma casa para qualquer cidadão morar em qualquer lugar do mundo. Enfim, só sabe coisas inúteis em um mundo tão desinteressado em utilidades reais. O "Eu" no título não está por acaso, seria um nome incompleto se lêssemos apenas "Daniel Blake", não é redundância, é afirmação de identidade, é um grito de desespero, assim como uma pichação na parede do local que tanto burocratiza e atrasa a vida de Daniel. A identificação como sujeito dispara: "Eu sou Daniel Blake, eu existo e não sou um cachorro".
Daniel passa a ser acompanhado por uma mãe solteira de dois filhos, e em determinado momento Blake perde o chão sobre seus pés, justamente por causa do homem que é, porque tanto faz se ele não pode pagar a sua conta de luz, mas não pode ajudar uma jovem perdida com dois filhos para criar, levando-a a uma situação constrangedora e nojenta é para ele a última gota para seu limite pessoal. "O Estado culpa você por ser pobre", disse o diretor em uma entrevista sobre o filme, sua amiga e mãe solteira, diz nos últimos minutos: "Para nós ele não era pobre". Porque apesar de suas dificuldades - pois logo descobrimos que se trata de um homem passado da meia-idade com problemas físicos e que acabou de perder a esposa - ele nunca usara isso de desculpa para odiar seus vizinhos estrangeiros ou se tornar uma pessoa rancorosa. E descobrimos que aquele que têm o maior dos corações é o que mais sofre dele, aquele que mais amparou a sociedade não está sendo amparado por ela. Não é preciso ter morado 5 anos em Londres ou 5 anos em Newcastle para saber que não se trata de uma realidade apenas britânica ou europeia.
Um usuário do Cineplayers comentou que I, Daniel Blake é uma daquelas sessões onde se entra e se sai mais humano, assim senti-me ao assistir Kes (1969), também de Ken Loach, por que se o garoto lá encontrava a sua liberdade nas asas de um falcão aqui não há falcão, porque apesar da infância dura e embrutecida ser também difícil, quem mais sente as dificuldades são os adultos, depois da infância já não resta tanta imaginação, logo a vida torna-se pior. Sentimo-nos mais humanos ao perceber policiais, burocratas e seguranças tratando Daniel e outros como se eles também não fossem humanos! Então Marx/Galeano (a frase não tem atribuição certa) estavam corretos? Somos podres? Porque o único a realmente entender Daniel Blake é um mendigo e uma mulher com imensas dificuldades familiares e financeiras, a dificuldade nos faz mais humanos e nada mais?
Foi dito pelo ator principal Dave Johns, então estreante nas telas de cinema, que sua única preparação para o filme, exigida pelo diretor, foi ter que realmente preencher um formulário para desempregados, bastou isso para entender o desespero e mesmo desânimo do protagonista. Não se pode reclamar que o filme é simples demais, sem grandes acontecimentos e com uma edição que parece acompanhar o tempo real com cortes em que a imagem é escurecida como se o tempo tivesse passado, pois se assiste uma representação de uma vida simples com um homem simples, é exigir demais outra visão.. É negar, assim como nega o vizinho negro ao dizer que "um dia ele será rico, pode esperar", o próprio princípio básico da vida: a mediocridade.
O "Eu" é para não esquecermos - assim como os empresários do edifício Aquarius no filme homônimo de Kléber Mendonça esquecem que Clara existe - o indivíduo, que luta, que resiste, que não irá sucumbir as forças capitalistas que corroem a ilha britânica desde os anos de Tatcher, para não esquecermos a importância em sentir-se humano. O indíviduo, Daniel, aparece 3 ou 4 vezes diante de belas propagandas com modelos fazendo comerciais de produtos que ele certamente não pode mais comprar. Aparecem por suas costas, fora de foco, mas estão presentes, e perturbam indivíduos que só esperam uma vida simples, sem grandes rodeios ou esquisitices sensacionais. Pelo centro de Newcastle, cidade mais populosa do norte do país, podemos vê-lo caminhando com um celular na mão: parece ser sua eterna busca pelo nada, ou mesmo por seu fim.
E assim, não se pode dizer que Loach nos entrega um cinema ultrapassado (como vem sendo criticado por alguns especialistas em cinema), dizendo-se que os mais jovens não poderiam compreender a mensagem de um filme "demasiado moderno", porque foram os mais velhos que decidiram o Brexit, a saída britânica do bloco europeu. Se sua mensagem, tão simplesmente passada a nós, não pode ser entendida, nada mais será.
Comentários (0)
Faça login para comentar.
Responder Comentário