Europa 51 poderia ser qualquer outra Europa, ser Europa 52, 63, 74, 85 ou até quem sabe Europa 2017. Há uma infinidade de Europas dentro deste ano e de todos os outros citados, ainda que uma semelhança em si venha com tudo: a miséria da condição humana. O que faz dos filmes italianos dos anos 50 tão únicos senão a sua profunda compreensão do sapatear vago do homem e da mulher pelo mundo? Está em Fellini e está em Vittorio de Sica, aliás, me salta aos olhos destes dois cineastas, desde que eu estava no caminhar da adolescência, a questão das ruas. Como são tristes as ruas do redor de cidades como Roma, Milão etc. Casas destruídas, escombros perdidos naquela planície imensa, crianças correndo e vagando sem rumo como cachorros de rua, estas ruas feitas de uma forma horrorosa tal qual como apartamentos que aparecem ao fundo, certamente construídos de qualquer maneira para abrigar aqueles que conseguiriam pagar um preço melhor para viver em uma condição mais decente no pós-Guerra (1945 em diante).
Aliás, que rombo no peito aberto desta Europa! Ideologias transversais ao valor humano como o Fascismo e o Nazismo certamente abriram, e é Irene (a gigantesca Ingrid Bergman) que vai interpretar e escancarar este sentimento, como se fosse um microcosmo do macro que esta "Europa 51" passava. Uma mulher pertencente a uma classe abastada, elitista, da qual não sabemos nada sobre o seu passado, mas que logo iremos descobrir o seu futuro, ou pelo menos uma parte dele. Até determinado momento Irene simplesmente não consegue compreender como o seu filho, que possuí tudo o que uma criança pode querer, consegue estar incomodado com sua posição social no mundo, com o seu próprio eu. Quem, principalmente nos anos de uma Europa destruída, iria recusar um trem de brinquedo dado pelos conhecidos de sua mãe, um presente tão novo e tão caro. Em determinada cena, o filho de Irene mostra uma atitude suicida que fica guardada apenas na memória dele e o do telespectador, enquanto o menino parece tentar representar uma cena de enforcamento diante da tela, somente nós, aqueles que assistem somos cúmplices dos desejos mais sombrios deste menino.
Haverá muito mais de seu filho em Irene do que havia até então, porque se a incomodação do garoto parecia não afetar a mãe, sequer compreensiva dos fatos que ocorriam embaixo do seu teto, é a partir da morte do menino que Irene irá entrar em um outro patamar da compreensão da vida. Tudo muda na representação de Ingrid Bergman, a mulher insensível e distante de valores sentimentais, mas apenas aos de classe (luxo, bem vestida, carros..), irá passar por uma transformação categórica e milimétrica filmada pelas lentes que tudo veem de Rossellini. O cineasta, tão criticado pela esquerda italiana na época do lançamento de Europa 51, cria um mosaico de Irene's, daquela que nada vê, para uma que tudo experimenta.
Seu socialismo é tão cristão quanto propriamente socialista, e nem mesmo uma prostituta conhecida pela vizinhança que antes lhe causava desgosto, agora é capaz de afetar seus valores de vida. O mais curioso ainda é que esta prostituta sempre tentava se vestir de acordo com uma classe a qual não pertencia, e mesmo participar dos mesmos lugares que Irene e seus convidados estavam, nas tão famosas festas burguesas europeias pela noite. A redenção desta mulher, seu acordo entre classes, vem apenas quando Irene renega a sua posição social de uma elite individualista e pouco preocupada com algo que não seja a si mesma.
Mas há duas coisas que ainda não comentei em Europa 51, um filme que certamente não é vencido em apenas uma visualização, visto que foi bastante incompreendido em sua época de lançamento (1952): a primeira é a que me desagrada, o ritmo de Rossellini por vezes é extremamente redundante e parece não atingir seus objetivos, ainda que eles lá estejam e possam ser altamente palpáveis. E isso acaba enfraquecendo a obra como um todo, o que não retira o seu status de magnum opus, mas dilui sua mensagem. A crise do casamento de Irene não é tão bem compreendida, e mesmo a relação com o marido, na sua mudança radical de valores, não é explorada senão em cortes rápidos e nem sempre profundos; assim como a sua relação com a miserável mulher chamada Giuletta, mãe de incontáveis filhos (eram 3?), interpretada então por uma talvez desconhecida Giuletta Masina (mulher de Fellini, na época desde 1943), ainda que esta relação seja mais aprofundada do que a outra. A segunda, e que tanto me agrada, é a contemporaneidade de Irene como mulher em busca de si. Em determinada cena, diante de um psicólogo, uma das imagens para interpretar dada a Irene por este assemelha-se bastante ao desenho de uma vagina, ao qual Irene supõe rapidamente ser um morcego (ser que vive escondido em cavernas, que procura sair na maioria das vezes na escuridão da noite..) e olha para o lado rapidamente, mostrando toda a sua inconformidade com a situação que presencia - e também mostrando aonde esta mulher acabou por se meter no quesito social. Sua ruptura com uma classe nobre é também reflexo de tempos em que a mulher se desprega de morais sociais outrora tão fixas, e ao se tornar quase uma santa refletindo que sua vida é tão miserável quanto aqueles que não possuem os mesmos bens materiais que ela possui, tornando-se torna uma mulher pertencente a novos meios, não tão rígidos e fixos, e primeiramente impostos por si mesma.
Porque afinal, o que bastou a Irene ter tudo o que uma esposa qualquer desejaria e perder um filho? E o que deixará para uma geração já nascida nos escombros das bombas que explodiram? É este momento traumático de perca, tão amplo e difícil de ser explicado que nem mesmo o Rossellini parece querer abarcá-lo, e sim nas suas consequências sociais-individuais. Mas Rossellini não está sendo militante, embora completamente politizado; não está fazendo um Manifesto Comunista per se, mas está sendo provocativo. Provocando aos italianos descobrirem uma Itália que Irene se propôs a conhecer (ainda que por egoísmo?) e que sabe-se lá o quanto a Itália escondeu essa sua face, e o quanto possivelmente ainda procura esconder.. E também não ela com um senso político (ela parece não saber se posicionar ideologicamente - e isso é coerente com a transformação da personagem), mas com um senso humanitário primitivo, positivamente ou não.
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