A Religião é um tema bastante problemático. Ao mesmo tempo em que é passível de rigorosas críticas e ressentimentos devido aos frequentes incentivos à perpetuação de atitudes violentas e reacionárias, a Religião também relaciona-se ao âmbito mais particular do ser humano, revelando-se muitas vezes como uma necessidade crucial para a psique desse humano extremamente ávido por estabelecer um sentido ao seu mundo e à sua existência (e para tanto podemos levar em conta tanto a Fé propriamente exaltada por instituições religiosas oficiais quanto a Fé relacionada até mesmo ao âmbito do conhecimento científico). Dessa forma temos uma complicada dicotomia entre o respeito por uma crença tantas vezes bastante pessoal ou mesmo vital e a crítica ou a contestação a uma crença que pode culminar em um extremo e prolongado ato de crueldade ou intolerância (como a História muito bem nos lembra). Mais complicado: seria a Religião um instrumento importante para a compreensão da vida humana ou seria ela um instrumento de alienação poderoso e potencialmente incontrolável? Devemos, por fim, aceitá-la e respeitá-la ou dissecá-la e questioná-la?
Tanto a Arte e a Filosofia quanto a História, a Sociologia ou mesmo a Teologia provavelmente ainda não chegaram a uma resposta mais concreta para essas questões e talvez nunca cheguem. Entretanto, é com a observação crítica mais a sensibilidade continuamente oferecidas por essas instâncias do saber (todas, aliás, sempre passíveis de opiniões heterogêneas e falhas de análise ou interpretação) que podemos, no mínimo, buscar uma compreensão maior sobre esse fenômeno tão marcante em nossa sociedade e até em nosso cotidiano mais privado (inclusive em relação aos declarados ateus). Nessa árdua tarefa de estudar a Religião, uma das possíveis frentes de análise é a abordagem justamente do processo de conversão, de como mesmo uma pessoa ateia pode se entregar a uma crença particular, a ponto de defendê-la fervorosamente. É nesse ponto que chegamos ao Cinema e, mais especificamente, ao Cinema estadunidense, com o último lançamento do renomado diretor Ridley Scott. “Êxodo: Deuses e Reis” apresenta uma nova e ousada reinterpretação da história mundialmente famosa de Moisés a partir de uma interessante abordagem da conversão sofrida por um general ateu, logo transformado em uma das figuras mais influentes da crença judaica e, posteriormente, da crença cristã – e é uma pena, inclusive, que, em contraponto a uma tão válida iniciativa, nos seja igualmente entregue uma obra por vezes tão fria e aparentemente tão mais preocupada com seu espetáculo técnico e estético do que com a maior paixão ou visceralidade de sua narrativa e temática.
Interpretado com enorme segurança e precisão pelo sempre competente Christian Bale, Moisés nos é apresentado como um general metódico, implacável e claramente cético em relação tanto à religiosidade que permeia a política, a cultura e as mínimas tradições de seu país, o Egito Antigo, quanto à crença na qual os escravos hebreus se apoiam para um mínimo de esperança ou consolo – como bem demonstra a cena inicial em que Moisés desdenha de uma profecia egípcia (ao contrário de Ramsés (Joel Edgerton), seu irmão de criação) ou na sequência do primeiro diálogo com os anciões hebreus, na qual Moisés desencoraja a fé dos patriarcas no descrédito com que se refere à promessa da Terra Prometida. É a partir dessa quase total descrença, portanto, que Ridley Scott encabeça toda uma radical desconstrução do general ateu, a partir da revelação de suas verdadeiras origens e, por fim, da aparição do deus hebraico que lhe concederá a missão de libertar o povo hebreu da escravidão egípcia – e já é interessante o modo como Moisés começa a mostrar um lado mais impulsivo de sua personalidade na medida em que defronta com agentes, fenômenos e fatos que fogem de seu controle e previsão.
Todavia, é nesse novo rumo tomado por Moisés que acompanhamos um instigante e gradativo processo de conversão. Arrebatado pela primeira e reveladora visão do deus hebraico, o agora ex-general não hesita em abandonar a própria família para se entregar a essa nova causa, numa inesperada redenção a uma crença que parece, de alguma forma, preencher ou compensar certos anseios, culpas ou mágoas derivados de seu passado no Antigo Egito. Todavia, mesmo essa súbita conversão não deixa de possuir uma boa dose de atritos, haja vista os receios e inseguranças que Moisés ainda mantém em relação a essa divindade bem como os laços fortes que o sujeito descobre ainda nutrir em relação ao seu antigo lar e história, principalmente no momento em que retorna ao Egito agora governado por Ramsés. Tais atritos, aliás, tornam-se ainda mais dramáticos a partir das sete pragas cruéis lançadas pelo deus hebraico contra o Egito, perante as quais Moisés não deixa de nutrir um sincero horror ou mesmo indignação, haja vista a intensa violência para com um povo no final ainda importante para sua história pessoal – algo, inclusive, finalmente expressado no momento em que a divindade hebraica alega o quanto Moisés ainda não vê o povo hebreu como “seu povo”, visto a forte ligação com o Egito pagão e faraônico latente no desconforto ou na hesitação do ex-general para com os ataques mais radicais proferidos à nação de Ramsés.
O deus hebraico, diga-se de passagem é outro interessante atrativo do filme. Inesperadamente, Ridley Scott o personifica na figura de um garoto, aqui interpretado por um Isaac Andrews que parece competir com Christian Bale em sua composição de uma entidade ainda mais metódica, ríspida, implacável e, por fim, impetuosa (e me arriscaria a dizer que o garoto consegue, estrategicamente, superar Bale). Mas a despeito do natural estranhamento perante essa representação peculiar do ente divino, a mesma não demora a se revelar como um poderoso acerto narrativo e imagético do cineasta por evocar justamente todo o desnorteio que aquela conversão representa para um Moisés já adulto e repentinamente submetido aos desmandos de uma criança que consegue ser muito mais cruel e impiedosa do que o ex-general – e é interessante como o menino se impõe sobre Moisés em uma calorosa (e interessante) discussão entre os dois a respeito da urgência da libertação do povo hebreu e da negligência que a divindade teve para com esse mesmo povo ao longo dos 400 anos de cativeiro em solo egípcio.
Mas além dessa curiosa imagética, Scott também investe a princípio, numa interessante ambiguidade em relação à nova fé do ex-general e ex-conselheiro de Ramsés. Especificamente, ao mostrar Moisés sendo gravemente ferido antes de sua primeira visão do divino (e o evidente delírio pelo qual ele passa após o acidente), o cineasta não deixa de sugerir a possibilidade de toda aquela revelação ser fruto de uma alucinação sofrida pelo sujeito. Essa ambiguidade ainda é reforçada pelas sequências em que a câmera subjetiva, assumindo a posição de Josué (Aaron Paul) no momento em que este espia as conversas entre Moisés e o deus hebraico, vislumbra apenas um Moisés aparentemente conversando consigo mesmo. Mas se tal ambiguidade poderia acarretar em uma ácida discussão a respeito da credibilidade ou da validade de uma crença, a mesma acaba sendo abandonada com a afirmação de uma efetiva existência sobrenatural, a partir, principalmente, da sequência das sete pragas (como evidente na cena em que as explicações “científicas” dos catastróficos fenômenos acabam fracassando frente a inegável paranormalidade da situação).
É em função da força desse sobrenatural, aliás, que Moisés finalmente se entrega a essa religiosidade, chegando a efetuar uma sutil oração à divindade momentos antes da última grande paranormalidade da narrativa – o afastamento das águas do Mar Vermelho – e assumindo definitivamente não só a liderança de um povo mas a orientação de todo um dogma – e o ponto máximo dessa conversão se dá na bela sequência dos dez mandamentos, na qual vemos um Moisés já de todo comprometido com as orientações de sua divindade (a mesma sequência, inclusive, retoma a ambiguidade das primeiras aparições do menino, embora tal duplo sentido já tenha sido infelizmente perdido perante os acontecimentos fantásticos presenciados anteriormente). É curioso, em verdade, como Moisés acaba se transformando até mesmo em um pregador, seja na sequência em que motiva o povo hebreu a cruzar o Mar Vermelho seja no sutil gesto de Moisés, no final do episódio, em chamar Ramsés para o outro lado da travessia para que este possa se salvar da fúria do oceano que se fecha – e é interessante, aliás, como Ramsés, em oposição ao mergulho de Moisés na nova crença, revela-se como um homem que relaciona-se com sua religiosidade de modo bastante superficial, o que, dentro do contexto dessa narrativa, reforça o seu papel de antagonista (e menção seja feita à competente atuação de Joel Edgerton, eficaz em transmitir as mágoas, vulnerabilidades e totalitarismos do jovem faraó).
É curioso, por fim, o modo como, ao decorrer dessa história de conversão, Christian Bale acaba assumindo a imagem do próprio Moisés costumadamente veiculada pelo sistema de representações imagéticas da arte ocidental – no caso o Moisés de barbas e cabelos grisalhos, de vestes rotas e apoiado num cajado. Ou seja, é ao longo dessa empreitada que Moisés torna-se Moisés, o efetivo líder religioso propriamente exaltado em antigas produções hollywoodianas como as duas versões de “Os Dez Mandamentos”, encabeçadas por Cecil B. DeMille, ou mesmo a animação “O Príncipe do Egito”, lançada pela DreamWorks no final dos anos 90 (e dirigida por Brenda Chapman,
Steve Hickner e Simon Wells). Contudo, mesmo essa interessante abordagem da história de Moisés não impede que “Exodus” não apresente notáveis pecados, a começar por essa própria imagética clássica do líder religioso.
No caso, a despeito da boa performance de Christian Bale, na escalação de um ator ariano para a interpretação de um homem nascido na região norte do continente africano, em um período anterior aos maiores contatos com os povos arianos, temos mais uma vez um homem branco ocidental assumindo um papel de liderança política e religiosa em uma região majoritariamente ocupada por outras etnias – e é de fato grave que, numa época em que as imagéticas bíblicas clássicas já são conscientemente contestadas, tal imaginário eurocentrista continue sendo veiculado. Isso, aliás, reflete-se em toda a escalação do elenco, uma vez que todas as personagens mais relevantes da narrativa são interpretadas por um elenco ariano, ao passo que várias das mudas figurantes aparentam verdadeiramente pertencer ao Egito Antigo (leia-se atores negros novamente renegados ao papel de figurantes em oposição ao protagonismo ainda pertencente a um elenco ariano, mesmo se tratando de uma história ambientada na África do Norte).
Mas além desse grave problema étnico e ético, “Exodus” também sofre de outro problema frequente nos recentes blockbusters de Hollywood. O filme, no caso, une-se ao espetáculo naturalista do cinema clássico hollywoodiano, a partir de sua busca pela perfeita evocação do mundo antigo e fantástico de sua narrativa – seja pela exímia reconstrução do Egito Antigo pela direção visual (o que inclui desde as vestimentas da realeza mais os elaborados cenários internos até os pomposos planos gerais com o aglomerado de escravos hebreus ou com as monumentais pirâmides), seja pela concepção meticulosa dos acontecimentos sobrenaturais da história, como as supracitadas sete pragas e a divisão do Mar Vermelho (aliás, ambas as passagens constituem os momentos mais fortes da projeção). Além disso, é igualmente notável o investimento da equipe de Ridley Scott na ilustração detalhada dos conflitos armados bem como de outras passagens de maior ação frenética ou épica.
Todavia, é na preocupação exímia com esse apelo visual e com o realismo gráfico dessa narrativa religiosa que a essência da mesma narrativa acaba sendo diluída. No caso, por mais interessante que seja a abordagem de Ridley Scott, sua obra ainda apresenta uma notável impassibilidade. Mais especificamente, é na maior preocupação com a estética naturalista e no desenvolvimento rápido de certos acontecimentos, arcos dramáticos e subtramas que a história torna-se muitas vezes bastante impessoal e até mesmo fria. Embora talvez evocasse o caráter mais alegórico da narrativa bíblica, o fato é que Scott, ao mostrar as mudanças sofridas por seu Moisés de modo quase totalmente súbito ou repentino, impede uma maior conexão ou envolvimento com esse protagonista – e a impessoalidade de Christian Bale só contribui para essa situação.
Em verdade, os momentos mais calorosos da história são justamente aqueles protagonizados, direta ou indiretamente, pela entidade religiosa e essa talvez seja a maneira encontrada por Scott para intensificar o processo de conversão pelo qual Moisés passa. Contudo, a mesma decisão ainda não deixa de comprometer a relação mais visceral que um laço afetivo mais sólido certamente proporcionaria em relação a essa personagem bem como à narrativa em geral. E se no final não presenciamos um melhor vislumbre de alguns dramas mais pessoais de Moisés como o amor por sua esposa e família ou as inquietações referentes a seu passado, ainda temos, por fim, o desperdício de notáveis coadjuvantes interpretadas por atores de peso como Ben Kingsley e Sigourney Weaver.
Em suma, temos mais um caso em que a confecção de uma imagem arrebatadora sobressai-se à busca de um calor ou mesmo de um maior sentimento por parte dessa mesma imagem. E embora encontremos pontualmente uma certa sensibilidade ou inventividade no olhar da câmera de Ridley Scott, a mesma continua muitas vezes soterrada pelo artifício hollywoodiano, aqui privado de vitalidade ou de plasticidade mais profunda. Em outras palavras, a câmera não vê, apenas celebra a sucessão das espetaculares e impessoais composições imagéticas do blockbuster, o que é uma pena considerando as potencialidades desse instigante retrato sobre os mistérios e aparentes redenções de um processo de conversão, aqui associado a uma fé tão libertária quanto avassaladora. Mas continuemos, apesar das falhas, investindo na compreensão dessa problemática religiosa, haja vista a sua inegável e aparentemente atemporal influência na movimentação de uma massa ou na radical transformação de um ser humano consciente.
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