“O mundo ficou chocado hoje com a morte de Diego Ricardo, a pessoa mais jovem do planeta. Ele tinha 18 anos, 4 meses, 20 dias, 16 horas e 8 minutos de idade.”
Um homem entra em um uma cafeteria. Olha em volta e todos estão em prantos com o noticiário da televisão. Ao dirigir seus olhos para aquela tela, logo se dá conta da notícia: a pessoa mais jovem do planeta acaba de morrer assassinada. Aos 18 anos de idade. Ele sai andando, inabalado pela dor coletiva que aquela morte representa. O estabelecimento explode em uma nuvem de fumaça logo após sua saída.
Você poderia estranhar esse cenário se o visse do lado de cá da tela, mas para o homem do parágrafo anterior, Theo Faron (Clive Owen), protagonista de Filhos da Esperança, nada daquilo representa motivo para choque, afinal no ano de 2027 ataques com bombas em prédios e notícias de “nenéns” maiores de idade morrendo nada mais são do que a confirmação do estado deplorável que se encontra a humanidade próxima de seu eminente fim. Sim, não se sabe ao certo, mas logo deixaremos de existir como raça dominante desse planeta, faz dezoito anos que nenhuma criança nasce, perdemos a capacidade de reproduzir e ninguém sabe o porquê. Theo não se abala exatamente por isso: sabe que morrerem todos é só questão de tempo – não que isso o impeça, claro, de utilizar a comoção popular como desculpa para ir embora do trabalho.
Depois de filmar uma obra em sua língua natal e receber uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, além do mais elogiado filme da saga Harry Potter até então (O Prisioneiro de Azkaban), o diretor mexicano Alfonso Cuarón assumiu um projeto arriscado, a adaptação do livro homônimo de P. D. James que, tal qual outras ficções científicas de respeito, retrata um futuro próximo distópico, onde longe dos carros voadores e da esterilidade de gigantescos prédios brancos com telas de ultra LED em suas fachadas, vivemos em um mundo sujo e violento, onde o máximo de tecnologia pode ser vislumbrado em uma arma utilizada por um guarda em uma cidade em ruínas que insiste em segregar os imigrantes ilegais em uma espécie de campo de concentração. Mas como mesmo nos piores cenários a esperança ainda consegue forças para florescer, eis que Theo é surpreendido pela ex-esposa, Julian (Julianne Moore, marcante em seu pouco tempo de tela), que logo o pede ajuda para transportar com segurança a garota Kee (Claire-Hope Ashitey), imigrante ilegal (ou fugi, como são chamados no filme) que logo revela estar... Grávida.
Partindo dessa premissa extremamente interessante, Cuarón nos presenteia com uma das mais instigantes ficções cientificas dos últimos anos, lidando com temas que jamais saem de moda, como a política do medo instaurada por governos ao redor do mundo (Bush Jr. como exemplo mais forte, claro) e o conceito tão antigo quanto a própria civilização de que retirando alguma das leis que mantém uma “convivência harmoniosa” entre os seres humanos, pouco resta além de uma horda de seres ditos racionais agindo como animais em busca de morte e destruição através de guerras e massacres – não que isso nos impeça de, com o impulso de alguma centelha de esperança, restabelecer uma natureza altruísta que nos faz esquecer a própria individualidade em busca de um bem maior. Porém, o roteiro de Timothy J. Sexton, David Arata, Mark Fergus, Hawk Ostby e do próprio Cuarón, vai além e oferece também um filme de ação que exala tensão em cenas recheadas com mais perigo eminente que qualquer exemplar do cinema de seu ano de lançamento, além de um belo drama que retrata a transformação completa de seu protagonista.
Inicialmente um homem desiludido com o mundo que o cerca, sempre acompanhado de uma garrafa de bebida alcoólica e da depressão pela perda do filho pequeno, Theo se transforma diante dos olhos do espectador em um homem forte e decidido, que não mede esforços para ajudar a garota que pode representar o futuro da raça humana. Interpretado de maneira contida, mas com talento por Clive Owen, Theo é um homem de poucas palavras e que prefere não deixar que seus interlocutores saibam o que pensa ou sente, assim ao invés de encher Kee de perguntas quando essa revela sua gravidez, o personagem permanece imóvel e com a expressão de perplexidade fixa no rosto, reorganizando os próprios pensamentos e tentando assimilar a real dimensão daquilo que acabara de ver. Da mesma forma, por mais que surja rindo e mais solto ao lado do amigo Jasper (Michael Caine em uma atuação divertidíssima e tocante) ou ao lado da bela Julian, a morte desses dois personagens em momentos distintos da produção é sentida com força pelo personagem que, ainda assim, se afasta por segundos e sofre em solidão, recuperando as forças e seguindo sua “missão” como se nada tivesse acontecido. Dito isso, não deixa de ser interessante como o personagem que valoriza tanto esconder os próprios sentimentos surja seguidamente fisicamente vulnerável, dos pés descalços ou com finos chinelos até um tiro que recebe em determinado momento.
Não bastassem todas as qualidades temáticas e o desenvolvimento de seu protagonista, Filhos da Esperança ainda se revela uma obra tecnicamente irrepreensível. Contando com efeitos especiais que conferem realismo e impacto às cenas de ação e uma direção de arte espetacular, que explora muito bem os cenários em ruínas em que se passam a história, equilibrando a atualidade daqueles locais com pequenos toques que nos lembram que é um futuro próximo ali retratado, o filme encontra ainda no magistral trabalho de direção de Alfonso Cuarón e na fotografia do mexicano Emmanuel Lubezki, um trabalho digno de todos os aplausos: mantendo a câmera constantemente na mão e conferindo um tom documental urgente às cenas, Cuarón e Lubezki filmam dois planos sequencia espetaculares, que por si só valeriam o filme. No primeiro a câmera sem cortes passeia por diversos personagens que interagem de maneira leve e descontraída no interior de um carro, quando se detém ao pára-brisa do veiculo, no entanto, uma sequencia de pura tensão tem inicio, com perseguição, tiros e uma morte surpreendente, tudo isso sem que a câmera sofra um único corte, terminando com o protagonista saindo do carro e retornando para ele. No segundo, ainda mais espetacular, acompanhamos Theo e sua luta para sobreviver enquanto atravessa uma cidade devastada pelo confronto entre rebeldes e o exercito inglês, em uma cena que dura mais de dez minutos e envolve diversos cenários e figurantes, representando um trabalho de logística e coreografia que imagino ter sido imenso para a equipe do filme.
Mas, ainda mais que esses dois planos sequencia, uma cena em particular representa o que de mais belo há em Filhos da Esperança: dois grupos inimigos interrompem uma batalha ao ouvir o choro de um neném que há tanto era esperado por todos. Uma cena emocionante e que nos lembra algo que teimamos esquecer: em nossos sonhos, medos e esperanças, somos todos iguais, ainda que de lados opostos de um confronto que jamais deveria ter se iniciado.
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