E QUEM NÃO FICARIA FURIOSO?
O remake de Fúria de Titãs (Clash of the Titans, 2010) é um dos filmes mais curiosos que eu vi nos últimos 15 anos. O filme reúne um grandiosíssimo elenco e uma ótima produção, com efeitos especiais de última geração adaptados para o 3D. Sua estrutura é a padronizada para os blockbusters atuais e o filme fala a linguagem da Hollywood de hoje. E mesmo assim o filme é uma bomba do tamanho de suas pretensões. Quem assistiu ao trailer e posteriormente ao filme, inevitavelmente chegou à conclusão de que o primeiro é infinitamente melhor que o segundo. Ou seja, aqueles 2 minutos e poucos do trailer (ou mesmo os poucos segundos do teaser) contém as cenas e informações mais relevantes de toda a produção.
Visivelmente "atorado" (apenas 90 minutos) para encaixar-se nos moldes que os estúdios julgam mais atraentes para o grande público, o filme é um atestado da mediocridade e da incompetência deste nicho de cineastas alçados ao estrelato por meio da covardia e omissão diante das imposições dos executivos e da necessidade de apresentar mais e mais cifrões, um sinônimo de qualidade e sucesso na atualidade. O diretor francês Louis Leterrier (O Incrível Hulk) se encaixa muito bem neste perfil de pau mandado sem personalidade nem vocação, realizador de filmes genéricos e insatisfatórios que envenenam a sétima arte e se espalham como um câncer que consomem todas as células ainda vivas e dignas existentes no organismo do cinema.
Pois bem. Com a humanidade mais independente e confiante nas próprias conquistas, suas preces para os Deuses do Olimpo diminuem cada vez mais, enfraquecendo-os. Sem meios para readquirir o amor de seus filhos, Zeus (Liam Neeson), Rei dos Deuses e criador da humanidade, vê a cidade-estado de Argos declarar guerra ao Monte Olimpo. Em uma ardilosa jogada, Hades (Ralph Fiennes), Senhor do Sub-Mundo, convence Zeus à castigar a cidade, pois com o medo reinstalado em seus corações, voltariam a rezar para os Deuses, tornando-os poderosos outra vez. Como punição às afrontas de seus habitantes e governantes, Hades amaldiçoa a cidade: ao eclipse solar do décimo dia que se aproxima, o temido Kraken virá até Argos reclamar sua oferenda, a princesa Andromeda (Alexa Davalos), que deverá ser sacrificada para saciá-lo. Neste cenário encontra-se o jovem Perseu (Sam Worthington), pescador e filho de pescadores, que descobre ser filho de Zeus, e vê sua inoscente família ser morta por Hades em um confronto com os soldados de Argos, jurando vingança à todos os Deuses. No momento em que Hades amaldiçoa Argos, Perseu se encontra na cidade e acaba por envolver-se nesta batalha, afim de confrontar Hades e vingar-se de vez.
Deixando de lado uma belíssima estória mitológica para dar lugar à uma trama boba e genérica de vingança mais do que clichê, o filme desperdiça seu grande potencial e acaba resultando em um filme curto extremamente cansativo e enjoativo. Não há nada que nos prenda ao filme, nada de empolgante ou minimamente interessante (exceto uma coisa, da qual falarei depois). Nada parece se ajustar em Fúria de Titãs, começando por seu elenco, que conta com nomes consagradíssimos como Liam Neeson (A Lista de Schindler, Busca Implacável), Ralph Fiennes (O Paciente Inglês, O Leitor) e Pete Postletwayte (Em Nome do Pai, Os Suspeitos), mas é encabeçado pelo terrível Sam Warthington (Avatar, O Exterminador do Futuro - A Salvação), mostrando um desequilíbrio enorme em sua composição. Warthington dá vida à um Perseu insoso e incapaz de carregar um filme até o fim. Mas justiça seja feita, mesmo sendo um grãozinho de areia suja neste oceano de talento que é o elenco principal, Warthington não é o único em atuação ruim. Neeson e Fiennes são pertencentes à uma casta de atores que parecer ter se cansado de optar por bons trabalhos de pouco prestígio e acabaram aceitando participar de produções de maior apelo comercial, vide seus últimos trabalhos. Neeson vem embarcando em thrillers de ação, aluns muito bons, como Busca Implacável e Desconhecido, alguns irregulares, como Busca Implacável 2 e A Perseguição e outros terríveis, como Battleship - A Batalha dos Mares. E Fiennes emprestou seu talento à cansativa e obsoleta série Harry Poter, como o vilão Valdemort. Pelo menos ao meu ver, estes não me parecem os trabalhos mais adequados ao estilo de interpretação destes dois grandes atores, mesmo gostando de alguns destes filmes. Aqui, em Fúria de Titãs 2010, ambos estão no piloto automático. Neeson ainda consegue dar uma certa imponência à seu Zeus, principalmente em seu sempre excelente trabalho de voz ("Releash the Kraken!" é de fazer tremer e gelar a espinha), mas não há muito o que fazer com um Zeus bipolar e afetado como este (já comento isso também). Já Fiennes tenta dar à Hades um pouco de dualidade, mostrando que o traído (por Zeus) senhor do Sub-Mundo é um ser em constante sofrimento, angústia, dor e deterioração. A postura corcunda e a voz cansada e fraca, quase gemendo, foram uma boa sacada, mas insuficientes para sustentar um personagem pouco trabalhado e que não é ajudado pelo roteiro, pois não é feito suspense em seus atos, que são muito claros e definidos (e pouco ambiciosos, eu diria) desde os primeiros minutos do filme. Quem ainda consegue criar uma empatia, mesmo com tão pouco tempo em cena, é o saudosíssimo Pete Postletwayte e seu Spyros, pai adotivo de Perseu. É através de Spyros que entendemos qual é o cenário e a situação entre homens e Deuses e conheceremos as (em tese) motivações de Perseu. Mas a pressa em colocar ação na tela faz com que acompanhemos 30 anos de vida de Perseu em pouco mais de cinco minutos, o que dificulta qualquer tipo de desenvolvimento. Por isso, por essa falta de desenvolvimento e apresentação, absolutamente 100% dos personagens do filme são unilaterais, mesmo que o roteiro tente nos empurrar goela à baixo que Zeus vive um dilema, que na verdade não passa de conveniência do roteiro.
E por falar no (arremedo de) roteiro, sua lista de fragilidades e sua inconsistência são tão grande, que este deveria ser objeto de estudo nas universidades de cinema mundo a fora. Já no começo, uma dúvida: quem diabos batizou Perseu? Ele fora lançado ao mar por Acrísio ainda recém nascido, é encontrado por Spyros e Mamara, mas vemos Io chamando-o de longe já pelo nome e na cena seguinte, passando-se no mínimo uma década, lá está Spyros chamando-o de Perseu. Meio complicado... Aliás, Acrísio/Calibos é outra curiosidade deste roteirinho mequetrefe. Se na cena onde Io conta a história de Perseu a transformação de Acrísio em Calibos é mostrada sem receio, por que todo aquele suspense em revelá-lo em seu encontro com Hades na caverna? Também não fica claro qual o poder dado à ele por Hades, nem por que sua mão decepada se transforma em escorpião gigante se apenas o seu sangue bastaria, como no restante da seqüência? Também neste núcleo, outra dúvida fica no ar: Afinal, Perseu nasceu na mesma noite em que Zeus "carcou" a esposa de Acrísio? Pois foi o que pareceu. E Calibos em si, é visualmente bacana, mas sua importância na trama é nula. Ele seria uma espécie de antagonista para Perseu, mas ficou muito à quem disso. O que restou foi uma retirada de cena patética, pois se mesmo quando ainda era Acrísio ele odiava Perseu por ser o símbolo de seu vergonha (lembrando que ele jogou Perseu recém nascido no mar), porque no momento de sua morte ele lançaria uma frase de apoio do tipo "Perseu, não se torne um deles"? Deprimente.
O pessoal de Argos também não se decide. O Rei Cefeu se se gaba de desafiar e declarar guerra aos Deuses, mas se borra todo quando sua rainha, numa das mais estúpidas afrontas que eu já vi em um filme, diz que a princesa Andrômeda é mais bela que Afrodite. Incoerente, da mesma forma que seus soldados, que erguem suas espadas e afrontam os Deuses, mas ao partir para a batalha oram pedindo proteção à eles! Não dá pra entender.... E porque será que eu tenho a impressão de que metade dos soldados que aparecem na cena da batalha com os escorpiões gigantes, sequer partiu de Argos? Ainda sobre os "argonautas", a princesa Andrômeda também marca passo na hora do ataque do Kraken, pois ela não estava nem por perto na cena em que seu pai morre, mas diz à Perseu que Argos precisa de um governante.
Esses absurdos do roteiro não poupam ninguém, nem mesmo o protagonista Perseu, que recebe um tratamento igualmente asqueroso. Primeiro, passa o filme todo salientando que é um pescador e que nunca havia pegado numa espada antes, mas no primeiro treino derrota o experiente Draco em questão de segundos. Não vai faltar um pra dizer "mas ele é um semi-deus". Aí eu pergunto: e daí? Qual é o poder dele? Ele não é imortal, não é super-forte nem nada do tipo. Então, pré-suponho que o poder dele é aprender a lutar de espada mais rápido que os outros. Deve ser isso. E se ele não possui poder algum além de usar os presentes que Zeus manda para ele, porque só ele poderia salvar Argos, e não qualquer outro para quem Zeus enviasse tais itens? E Perseu passa o filme todo dizendo que fará isso "como um homem, sem a ajuda dos Deuses", mas voar no Pégasus e usar a espadinha encantada pelo raio de Zeus não conta? E outro fato: as bruxas do estigeiras, que tudo sabem e tudo vêem, profetizam que Perseu morrerá ao confrontar o Kraken. Mas ao final ele vive feliz para sempre e muito bem acompanhado, diga-se de passagem e ninguém comenta nada a respeito, nem dão satisfação nenhuma!!
Mas nada, absolutamente nada, se compara a esse Zeus bipolar e afetado (pobre Neeson). Talvez seja o personagem mais inconstante e incoerente dos últimos anos do cinema. Numa cena, ele despreza Perseu completamente, e na seguinte, demonstra um afeto tocante com um bonequinho do pescador. E mesmo dando toda a ajuda possível para Perseu, ao final Zeus ainda ordena a libertação do Kraken (numa das únicas boas cenas do filme, marcada pela presença impressionantemente forte de Neeson), para depois dar mais uma mãozinha à Perseu para vencer Hades (aliás, aquilo foi o clímax?). Ou seja, primeiro Zeus ordena a destruição de Argos e depois tentar ajudar e fortalecer o único homem capaz de impedir isto, depois liberta a fera que trará essa destruição e depois ajuda o homem capaz de detê-la. Que burrice, fortalecer seu inimigo! E a proporção de poder/fraqueza dos Deuses é estranha, já que Zeus ficou enfraquecido por perder o amor de toda a humanidade em geral, mas Hades ficou muito mais poderoso só com as preces de alguns habitantes de Argos. Parece que nada foi bem pensado nem pesado neste filme!
Ainda existem alguns pormenores que completam esta lástima de filme, como os irmão caçadores que se dizem invencíveis, mas dão no pé ao primeiro sinal de perigo. O Caronte mal feito pra caramba. A trilha completamente descontextualizada que lembra mais um filme dos Transformers do que um épico. O Poseidon ignorado. A irritante câmera lenta em cenas desnecessárias. A Medusa que parece saída do filme A Lenda de Beowulf. As mortes sem graça e repetitivas e as batalhas estilizadas demais. E posso não ser nenhum guerreiro habilidoso e lendário, mas sei que não se arremessa uma lança como Eusébio fez para Draco na cena do escorpião. E o tempo pode até ser relativo, mas Perseu levou dez dias até conseguir a cabeça da Medusa (o tempo foi estabelecido por Hades baseado no eclipse - o porque eu não sei). Após o confronto com a Górgona, o eclipse se inicia, libertando o Kraken. Perseu então monta no Pégaso e ruma para Argos, onde ele chega em minutos!!! Com o Eclipse ainda em fase inicial!! E só pra constar: não fica escuro!!! O eclipse é só pra enfeitar, não exerce efeito algum na iluminação do cenário. Impressionante...
Para ser justo com o filme, há sim um ponto positivo neste remake (aquela exceção que fiquei de comentar): o visual espetacular do Kraken. Claramente consumindo boa parte do orçamento para sua elaboração, a criatura entra fácil na galeria dos monstros mais legais do cinema, principalmente considerando os últimos anos onde aquela mescla de lagosta com siri de Cloverfield - Monstro (Cloverfield, 2009) chegou prometendo e não cumpriu. O movimento e os detalhes do Kraken impressionam, assim como sua colossal dimensão. É o que justifica perder estes 90 minutos de vida assistindo esta porcaria.
Da forma como foi idealizado, montado, conduzido e concluído, Fúria de Titãs 2010 parece um daqueles jogos de videogame ruins, onde os desafios se acumulam e quando são vencidos já surgem outros novos sem o menor desenvolvimento e você conclui o jogo sem nem salvar, pois não pretende jogar de novo. À título de curiosidade: o jogo baseado no filme é tão ruim quanto. Sam Worthington é ruim mesmo em sua versão digital.
Fúria de Titãs 2010 é mais um daqueles tantos exemplares brotam aos montes ano após ano em Hollywood, onde muito dinheiro é investido (desperdiçado) na elaboração dos efeitos especiais, enquanto o que realmente importa - leia-se roteiro e direção - ficam em segundo e terceiro plano. Se até os Titãs ficaram furiosos, imagina nós, meros mortais e cinéfilos.
Comentários (0)
Faça login para comentar.
Responder Comentário