“Está perguntando se matei minha esposa?”
À primeira vista, o novo e sensacional filme do gênio David Fincher, Garota Exemplar, parece um daqueles suspenses que nos instigam a solucionar o mistério por trás de um crime. Porém, logo essa impressão é desfeita e percebemos estar diante de uma história sobre a própria arte de contar histórias. As que contamos para nós mesmos, sobre como somos muito melhores do que realmente somos. As que contamos para nossos parceiros, sobre como nunca seremos iguais os casais que perdem a si mesmos e um ao outro em meio à relação. As que contamos para as pessoas de fora de uma relação, sobre como somos tão mais feliz do que a realidade nos lembra. As que a mídia conta ao público, na tentativa de tornar crimes em situações rentáveis. E, finalmente, a história que um cineasta que não sabe errar a mão conta aos seus espectadores: uma relação de amor patológica que se torna não apenas uma investigação cada vez mais complexa sobre um crime, mas também uma sátira sobre os casamentos.
O crime é o desaparecimento de Amy Elliot Dunne (Rosamund Pike) no dia de seu aniversário de cinco anos de casamento. O principal suspeito logo se torna o marido, Nick Dunne (Ben Affleck). A suspeita só se agrava conforme as investigações da dupla de policiais responsáveis pelo caso (Kim Dickens e Patrick Fugit) avança e o comportamento de Nick se torna cada vez mais estranho. A mídia logo elege seu lado e torna o personagem de Affleck culpado, promovendo linchamentos morais diários, onde um simples sorriso fora de hora se torna um atestado de mãos ensanguentadas.
O roteiro de Gillian Flynn então investe em uma linha narrativa dividida em dois tempos e protagonistas: de um lado o presente, onde Nick se esforça para descobrir o que aconteceu com a esposa e provar sua inocência, e os flashbacks que trazem a narração de Amy sobre como era seu casamento. As versões logo começam a se confrontar e o espectador se vê forçado a ter suas suspeitas acerca da inocência do protagonista. Ao menos até Fincher mais uma vez provar que domina os plot twists como ninguém e adiantar o esperado “final surpresa” pata finalmente focar no que lhe interessa: a cultura das aparências, simbolizada por uma das instituições que mais parece depender delas, o casamento. Logo, Fincher e Flynn nos colocam em posição privilegiada enquanto acompanhamos de dentro as coisas boas e ruins que chegam no mesmo pacote das alianças: a ambição de manter sempre o fogo inicial da relação, que logo se revela mais difícil do que é; os pequenos conflitos que logo se tornam verdadeiras guerras – mudar de casa ou não mudar? Ter filhos ou não? Gastar dinheiro assim ou assado? -; e finalmente, o momento mais doloroso possível, perceber que não só a pessoa ao seu lado já não é mais a mesma do início, como você também não. Alguns recorrem à terapia de casais, mas não Nick e Amy, que logo descobrem haver outras maneiras de reacender a chama nupcial.
É a primeira vez que Fincher enverada por esse lado, o dos romances. Não o romance épico de O Curioso Caso de Benjamin Button, ainda seu filme mais subestimado, mas o romance real e cheio de rachaduras invisíveis à primeira vista. Aquele romance que para os de fora parece uma relação psicótica, nos deixando incrédulos quando uma parte do casal decide permanecer ao lado da outra, mas para quem está dentro, bem, ainda que complicado, parece algo natural. E o diretor não decepciona, continua mostrando que possui uma das melhores mãos para conduzir atmosfera na atualidade. Já na abertura do filme Fincher dá o tom do que virá a seguir, trazendo Afflack acariciando os cabelos da esposa enquanto sua voz em off diz que gostaria de abrir seu lindo crânio e encontrar algumas respostas para dúvidas que lhe incomodam lá dentro. E revisitar essa mesma cena ao final do filme, quando finalmente entendemos a natureza dessa, é um dos maiores prazeres cinematográficos de 2014.
Vale dizer que o cineasta segue um excelente diretor de elenco, arrancando performances inspiradas de Ben Affleck – isso mesmo, chupa hater! – e Rosamund Pike. Para a atriz, Fincher entrega uma das melhores personagens femininas dos últimos anos e se vê recompensado com uma atuação que, se poderia descambar na caricatura exagerada, se revela uma exploração de nuances digna dos prêmios do final da temporada. Já Affleck, um dos nomes mais odiados do cinema americano – injustamente, diga-se, já que o ator pode não ser um grande intérprete, mas também não é o horror que muitos falam -, aos 42 anos apresenta em sua carreira um plot twist digno dos filmes de Fincher, entregando sua melhor atuação, onde explora todos os pontos criticados em suas composições passadas em prol de um personagem que traz em sua expressão a mesma medida de acidez, raiva latente e imprevisibilidade. Além deles, Tyler Perry, Carrie Coon, Neil Patrick Harris e Missi Pyle se destacam em papéis que partem de estereótipos já prontos para criar personagens com características próprias.
Contando com a terceira colaboração de Fincher com Trent Reznor e Atticus Ross, a trilha sonora de Garota Exemplar é excelente por compor o clima de importantes sequencias sem precisar se sobrepor às imagens que embala – e conseguir isso em sequencias onde os diálogos dão lugar ao uso da trilha é digno de aplausos. Mas é mesmo a montagem de Kirk Baxter (quinta vez ao lado de Fincher) é um show que se torna um show a parte, mais uma vez se tornando uma aula de como explorar a linhas narrativas paralelas sem deixar o ritmo cair.
Queda de ritmo, aliás, é algo que não parece pertencer ao mundo de David Fincher, um cineasta incapaz de diminuir o ritmo da qualidade de suas obras.
Parabéns pelo texto Pedrão
Valeu, Darlan 😁