UM DIRETOR EXEMPLAR
Que nos últimos 20 anos David Fincher se estabeleceu como um dos principais cineastas da atualidade, não há o que discutir. Também pudera, seu currículo é composto por obras como Se7en, Clube da Luta, Quarto do Pânico, Zodíaco, O Curioso Caso de Benjamin Button, A Rede Social e Os Homens que Não Amavam as Mulheres. Não há o que questionar. Talvez, a única obras destoante seja mesmo Alien 3, seu primeiro filme. Mas mesmo assim, ali já se podia sentir o tom de seu cinema. Um tom frio, desesperançoso, salientando sempre a violência e a maldade do ser humano. Fincher, geralmente, não nos dá um final feliz. Apenas o final possível. E mesmo sabendo das características do cinema de Fincher, o diretor consegue prender nossa atenção por duas horas e meia em um thriller pesado, tenso e cheio de revelações, brincando com o espectador e o convidando a vivenciar este turbilhão que é Garota Exemplar (Gone Girl, 2014), roteirizado por Gillian Flyn, autor do romance que dá origem ao filme. Mais uma vez, com êxito.
Amy Dunne (Rosamound Pike) e Nick Dunne (Ben Affleck) formam o típico casal "queridinhos da América", ambos escritores bem sucedidos sendo ela a inspiração para uma série de livros infantis de enorme sucesso (tipo a turma da Mônica dos EUA) escrita pelos pais da moça. Os cinco anos de casamento perfeito vão por água abaixo quando Amy desaparece sem deixar vestígios. À medida que a investigação aumenta, os indício de que Nick possa estar envolvido aumentam e os segredos daquele conto de fadas vão sendo revelados. Embora a trama seja inicialmente genérica, confesso que acho complicado falar de Garota Exemplar de maneira integral, pois o filme se divide em duas partes distintas do mesmo enredo - pelo menos, na minha visão. Portanto, para conseguir explicar melhor minhas impressões sobre o filme, divido este comentário em duas partes: A Desconstrução e A Batalha Midiática.
- A DESCONSTRUÇÃO:
Acompanhando os primeiros passos da investigação, e obviamente os primeiros minutos de filme, um sentimento de estranheza nos acomete. É um sentimento quase indecifrável, mas que incomoda. Em parte porque o tom de voz nitidamente infeliz de Amy ao narrar as páginas de seu diário não condiz com as maravilhas e o paraíso que ali ela descreve. Assim como a reação de Nick com relação a tudo, tranquilo demais para quem desconhece o paradeiro de sua esposa, parecendo acreditar que tudo não passa de mais uma caça ao tesouro promovida por sua mulher como faz em todo aniversário de casamento. Aos poucos, a imagem daquele casamento perfeito e do marido desamparado vão se decompondo e dando origem a um mar de suspeitas. As aparências vão se transparecendo e o tapete da felicidade é removido revelando toda a sujeira que escondia e acumulada. A esposa desaparecida, antes amorosa, carinhosa e "descolada" (termo bastante usado no filme), agora era vista como fria, distante e arrogante. O marido apaixonado e protetor, agora se revelava acomodado e violento. O casal perfeito não passava de um casal qualquer vivendo um frágil conto de fadas em um castelo de cartas à espera do primeiro sopro mais forte para derrubá-lo.
Fincher não só desconstrói a imagem deste relacionamento como o expõe à mídia e ao julgamento. Soltando informações implícitas em cada cena e em cada ação e diálogo, o diretor vai nos aproximando da mensagem que seu cinema sempre nos transmite: aquilo não pode ter um final feliz. A super-exposição do caso na mídia parece agradar os pais da moça que, mesmo sofrendo com o ocorrido, promovem a vida da filha e a "Amazing Amy" de seus livros, mas deixa Nick bastante desconfortável, muito por sua inaptidão em portar-se diante das câmeras. Com isso, o caso vira um prato cheio para a imprensa marrom que engole Nick por completo com um apetite voraz e massacrante. Porém, um olhar mais atento revela que tal desconforto de Nick pode significar que ele esconde algo. Não demora muito e seu relacionamento amoroso com uma de suas alunas vem à tona. O aumento no seguro de vida da esposa, tendo-o como beneficiário também. As dividas feitas em seu nome e e uma possível gravidez de Amy ganham as manchetes e Nick agora é o principal suspeito do assassinato da moça. Não mais torcemos para que Amy seja encontrada a salvo. Agora torcemos para que Nick seja condenado.
Um detalhe: o estado de Misouri tem pena de morte. Se Nick realmente é inocente como diz, precisa correr contra o tempo para provar.
Fim da primeira metade.
- A BATALHA MIDIÁTICA:
Agora o principal suspeito do assassinato de Amy, Nick quer provar que além de inocente, é vítima de um ardiloso esquema de sua esposa para mandá-lo ao corredor da morte. Para obter êxito neste estapafúrdio argumento, ele precisa jogar com as mesmas armas que praticamente o sentenciaram: a mídia e a opinião pública. Com a ajuda de um advogado badalado e experiente, Nick mostra sua faceta fria, calculista e esquemática, moldando sua imagem de vilão à de homem arrependido e apaixonado, que acima de tudo anseia por ter sua mulher de volta. E a jogada da certo e agora todos clamam pelo reencontro e redenção do casal.
Esta parte do filme me fez lembrar muito o caso da menina Taina, feita refém de seu namorado em seu apartamento em São Paulo. Caso este que teve um desfecho trágico para a menina. Mas o que me fez lembrar este caso se as circunstâncias são completamente diferentes? Simples: o carnaval que a imprensa fez do caso. Em Garota Exemplar, as pessoas tratam o possível sequestro/assassinato como um reality show, acompanhando cada passo como se fosse uma novela desejando o final que mais lhes parece apropriado. Fincher explora muito bem a dualidade de cada personagem e os coloca em um ambiente completamente hostil à cada passo que dão, como se não tivesse escapatória dali. o sentimento de angústia começa a transbordar e por todos os cantos desde os créditos iniciais, com cortes tão rápidos que parecem não querer revelar algo que possa estar ali, mas que requerem um olhar mais demorado. Mas aqui, neste momento do filme, o diretor extrai o máximo de cada possibilidade. Nenhuma passagem, nenhuma cena é gratuita em Garota Exemplar, sempre revelando algo ou levantando uma suspeita.
É aqui que descobrimos que as suspeitas de Nick estavam corretas. Amy havia elaborado um plano monstruoso para que seu marido fosse condenado à morte, que ele jamais a agrediu nem gastou as economias - mas o adultério era real. Porém, com seu plano indo por água abaixo, pressionada e sem a menor possibilidade de escapatória, Amy acaba retornando para o marido, usando como álibi um falso sequestro por um antigo namorado que a perseguia desde o colegial. A mídia está eufórica. A população histérica. Nick, em pânico.
O final de Garota Exemplar foi perfeito para mim. Ambos confinados a viverem numa mentira, num carma, num calvário. Destinados a se amarem e se odiarem num final feliz para os outros. Fincher, mais uma vez, nos entrega um filme superior, emblemático e desafiador. Desconstrói sonhos e ilusões. Retrata a cidade e a vida suburbana com uma selva decadente, onde não vislumbra-se salvação. Estaríamos todos condenados a viver sob uma fachada para escondermos que, no fundo, somos todos desprezíveis e falhos?
Affleck é aturável, quero ler o livro agora! Dizem que o final é diferente, mas nem tenho certeza...
Ô Taís, nos brinde com sua qualificada opinião😉
Tô esperando o teu texto...
Muito obrigado pelo elogio.
Bela crítica Cristian
Valeu, Darlan. Fincher está entre meus diretores favoritos.