O que faz na atual sociedade humana o indivíduo ser taxado de idiota? Ser vilipendiado e escorraçado depende de uma série de fatores, lugar onde você mora (país, cidade, bairro etc, pessoas com que você se relaciona, seu modo de vestir e agir, sua forma de pensamento, a cor de sua pele ao tamanho do seu cabelo, sua orientação sexual.. Enfim, são diversos os elementos inseridos em um contexto para se sofrer algum tipo de preconceito. Mas e quando o sujeito é hostilizado não por uma hipocrisia moral ou um ato de desonestidade (que ainda poderia ser injustificável), mas por manter uma posição segura e honesta, sem pretensões de sacanear ao próximo? É exatamente isso que acontece em Glory (Слава, 2016), quando um trabalhador em uma situação social e financeira bastante delicada, encontra uma quantia enorme de dinheiro sem um dono e resolver avisar o governo.
Doistoévski, quando escrevera um de seus romances mais famosos, O Idiota, do ano de 1869, retratara um humanista epilético que se colocava em uma sociedade russa completamente diferente daquilo por ele esperado, colocando a sua própria bondade e os valores que leva consigo em contradição. A comparação a ser feita com o operário tímido e simples Tzanko Petrov (Stefan Denolyubov) não é por acaso, a cultura búlgara há muitos anos tem um ponto de contato bastante forte com a russa, isso caso O Idiota não fosse um livro de conhecimento mundial. Mas a própria gagueira de Petrov o transforma em uma piada pronta, porque além de pobre e sujo, é burro. Não sabe falar no país em que é preciso ter uma ótima comunicação - ou muita cara de pau mesmo - para mobilizar massas e se impor como um sujeito de bem. Em outras palavras, mentir, ser o que não é.
Aliás, através de Glory, reflitamos sobre o que é ser um sujeito de bem. Ninguém duvida que a secretária principal do ministro venceu na vida, a ambiciosa e decidida - uma combinação sempre perigosa - Julia Staykova, interpretada pela já destacável Margita Gosheva. É ela que aparece com bons médicos, um bom celular, um bom carro com uma boa casa e um marido, não Petrov. Tzvetan Petrov é um completo idiota: ele ama um bando de coelhos, não se importa em parecer elegante para ninguém, não sabe ser escravo de um celular e devolver dinheiro que não é dele. Todos esses fatores, inclusive o último, tornam-no um sujeito desvinculado de sua sociedade. E não é da búlgara, com toda a sua burocracia herdada do bolchevismo centralizador da antiga União Soviética e aperfeiçoadas com seguidos governos democráticos corruptos e descerebrados. Trata-se de um problema mundial, e aí está a grandeza de um filme que saber sair de suas fronteiras, que sabe dialogar com outras partes do mundo.
A corrupção está para a honestidade assim como estão os idiotas para os espertos. Como bem destacou Isabela Boscov em seu blog na Veja "se no Brasil está assim, imagina na Bulgária", dando ênfase para o momento delicado do país, que já dura ao menos 2 décadas de pessimismo e contradição. O principal problema dessa distante república dos Balcãs encontra-se na sua população: se no início dos anos 60 o país contava com cerca de 7,867 milhões de habitantes, os quase 9 milhões de 1985 parecem brincadeira perto dos 7,128 milhões da atualidade. Basta olhar algumas fotos do país e analisar as casas com reboco descascado, grama por cortar, estradas esburacas, fazendo parecer alguns lugares a filmes de zumbi. Há vilarejos no país em que crianças não nascem há mais de dez anos, onde jovens não conseguem encontrar uma parceira para casar, simplesmente por estar ficando tudo desabitado – o que pode ser percebido pelas ruas e casas que aparecem na película. Mas pior: a política de imigração no país é extremamente racista/etnicista e não gosta de estrangeiros.
Kristina Grozeva e Petar Valchanov, o diretora e diretor que anteriormente dirigiram o semelhante A Lição (Урок, 2014), onde uma cidadã comum – professora de inglês – via a sua vida virando de cabeça para baixo depois de uma reação em cadeia. Por incrível que pareça, não é por acaso que o enredo de Glory é tão parecido com a vida real, o casal de diretores prepara uma trilogia com filmes produzidos através de recortes de jornais, ou seja, o acontecimento de Petrov tem um grande fundo de realidade, não somente pela câmera movimentada e focada nas expressões dos personagens, mas por ser literalmente um fragmento dos acontecimentos da vida. Glory ainda é o segundo desta possível trilogia, que começara com A Lição, e se seguirem nessa linha, Grozeva e Valchanov podem tornar-se grandes diretores das fileiras de filmes internacionais.
O sentimento despertado por Glory é sem dúvidas a aflição, os próprios diretores relataram que a gaguez interpretada pelo ator deixava a todos apreensivos no set. Mas é através de assessora que esse defeito do operário vai ser levado a cabo: não bastou ele devolver um dinheiro que poderia deixá-lo rico para o resto da vida, ele ainda precisa ser gago e atrapalhado. É a piada pronta do país. O próprio relógio marca Glory – que dá o nome ao filme -, do qual o operário usa no pulso com tanto orgulho pela memória afetiva, foi o objeto simples e prático que marcava o tempo dos búlgaros sob o socialismo (e eu, aqui, busco exemplificar todos esses detalhes, porque há referências demasiado pessoais que nós brasileiros não conseguiríamos captar, talvez até tirando a força do filme). Então, quando a assessora o perde, é quando Petrov entra em desespero, porque se trata de um sujeito ligado as coisas simples de sua vida, sendo indiferente os milhões entregues ao governo ou o novo relógio digital que ganhou do mesmo, naquele Glory havia a assinatura de seu pai, fato que o faz ter o pulso machucado de tantos anos de uso.
E aí entramos em outro problema, a assessora do ministro também está preocupada em fazer uma vida nos moldes tradicionais do “bom cidadão”, daqui obviamente da “boa mulher de família”, a bela e recatada – que não é do lar – nunca demonstra afeto por seu marido, e ele esboça poucos sentimentos a ela, mais para o final da película podemos perceber no seu rosto uma expressão de desgosto por suas atitudes, mas a família que ela tenta tanto formar acaba sendo deixada de lado antes mesmo de nascer. A gravidez de forma artificial, onde ela e seu marido selecionam o embrião dos embriões para ter um filho saudável, praticamente um super-homem, evidencia duas coisas: (1) não parece haver nada de verdadeiro em Staykova e (2) naquele país, relativamente pequeno e com a tal população despencando, são os burocratas cínicos e corruptos que dão o tom do que serão as futuras gerações. O futuro que Staykova traz é de um país com presente e futuro abortados, embora paridos.
Petrov não tem família, dificilmente formará, sua franqueza diante dos fatos não é bem-vinda. Ao relatar na frente das câmeras ao presidente, um tal processo de roubo de gasolina, ele coloca o humor do líder da nação em risco e a sua própria vida. Se Dostoiévski viesse ao mundo e tivesse que relatar a realidade das atuais burocracias corruptas, certamente diria que a definição ideal para um idiota é daquele que tende em remar contra a maré dos grandes interesses capitais. Ora, o que importa mesmo se está havendo ações antiéticas se isso acaba gerando uma fonte de lucro? Petrov, com a sua idiotice só mesmo cinematográfica não entende.
Só que quando o nosso personagem principal, o operário herói, revela que também pegou algumas notas do que estava espalhado nos trilhos, a desilusão é bastante pungente, e isso pode criar um conflito interno em quem assiste, afinal, seria ele menos louvável por isso? O certo é que, o deboche demonstrado desde os jornalistas aos funcionários do governo não pode ser simplificado pelos defeitos de fala ou de conduta de Petrov, o que é mesmo engraçado é seu não sentido de egoísmo. É realmente a piada do século.
Assim, Glory foi selecionado para representar o esquecido país dos Balcãs no Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, que vai escolher um filme para ser premiado em 2018, uma contradição tendo em vista quem de fato seleciona esses filmes para irem a tal premiação. Seria bastante sarcástico se fosse o relógio digital dado pelo governo búlgaro a um cinema que ousa desafiar o seu processo mecânico de moer cidadãos honestos. É um belo tapinha nas costas por um trabalho louvável, do ponto de vista técnico e teórico, porque este filme não tem pretensões de ficar datado.
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