Os filmes de Cristian Mungiu geralmente são quase completamente apresentáveis nos 10 ou 20 primeiros minutos, isso significa que uma boa parte da estória é entregue nesse momento: seus principais conflitos, seus principais discursos e aquilo que ele pretende abordar fica evidente. No caso de Graduação (Bacalaureat, 2016) temos muitas coisas nestes primeiros minutos: pai x filha, pai x mãe, pai x amante, polícia x sociedade, sociedade x barbárie e Romênia + sua sociedade. Por incrível que pareça o estupro parece ficar de lado nisso que citei, e é justamente o que deveria chamar mais a atenção, mas não é. É que a própria Eliza (Maria-Victoria Dragus) não demonstra qualquer remorso quanto ao caso de tentativa de estupro, parecendo totalmente calma em abordar o assunto em primeiro momento. O que mais chama a atenção aos olhos do espectador mais atento é que: quando o pai de Eliza relata que não deve ter qualquer remorso de deixar o seu país (por amigos, por nostalgia..), e que se na idade dela ele tivesse essa chance, sequer teria hesitado em fazê-lo. Quem conhecer apenas superficialmente a história do país retratado perceberá que aqueles que cresceram lá há 20 anos não são os mesmos que crescerão agora. Ainda que as oportunidades sejam escassas, há uma liberdade muito maior em ir fazer formação no exterior civilizado (aqui a Inglaterra). Esses acontecimentos desencadeiam duas percepções: aquele pai não parece ter a proximidade que aparentava ter com sua filha (ela não é mais virgem e ele não sabia, ele se relaciona com alguém que aparenta ter a mesma idade dela); e segundo, a visão dos romenos com a sua própria sociedade, uma visão de rebaixamento, de que a extinção de alguns aparelhos de Estado colocaram seu país como subalterno da indignidade (a extinção da pena de morte, o "lá fora é melhor que aqui"). Isso tudo em menos de 15 minutos..
O cotidiano filmado por Mungiu tem um quê de hitchcockiano, quer dizer, uma pedra é lançada misteriosamente na casa dos personagens principais, um animal de repente é atropelado em um momento de silêncio na volta para a casa.. Na maioria de seus filmes, e isso vem ficando cada vez mais evidente ao longo de suas produções, suas abordagens sobre momentos banais do cotidiano ganham grandes desfechos, grandes repercussões - e momentaneamente até ir para o trabalho de manhã pode se tornar em uma grande epopeia do suspense! Aliás, seus roteiros são uma aula de como tirar muito de tão pouco (como uma simples prova do que aqui seria um ENEM).
A partir disso o foco não é mais do caso de estupro ou os pormenores antes citados, tomando uma abordagem ética da situação. Afinal, é melhor ter ética e perder aquilo que tanto se lutou para ter ou simplesmente desviar-se um pouco da questão filosófica e adentrar nos objetivos?
Mungiu faz parte de uma geração romena de cineastas que não cansa (ou talvez até já canse, mas que não parem mais!) de surpreender o mundo cinéfilo, seus conflitos são sempre banais, mas sempre novos e sempre de grandes proporções. Tanto que é difícil sair de um filme seu sem ter a mínima consciência de que se presenciou algo extremamente marcante, no mínimo incômodo. E eu particularmente adoro aquele cinema que incomoda, que provoca.
Marius que sempre fora a estrutura do filme (e também daquela família) ganha uma proporção dramática muito maior no final. E isso é gozado, porque apesar de ser sempre presente, o seu protagonismo só chega muito depois, e talvez seja o momento em que mais incomoda no filme. Marius (Rares Andrici) parece nunca agradar ninguém, embora lute por todos as suas conquistas nunca atingem o que ele deseja atingir - todos vão ficando em uma posição cada vez mais confortável e o cidadão termina sem casa e cuidando do filho da namorada. E é perceptível (na visão do diretor e também na minha) que seus objetivos sempre foram os melhores para todos, nunca para si, é uma alma desgastada que está sempre lutando para os outros e sendo amordaçados por esses outros. E isso fica para além do certo x errado, porque é quando o espectador do filme se dá conta de que Marius merecia um pouco mais, e o mais interessante é que ele sequer fica brabo, não há uma parte do filme em que ele grite com alguém, e quando se desanima na frente de sua ex-esposa, acaba pedindo um envergonhado "desculpe-me".
Com sua câmera paciente (percebam como não demora muito para entendermos que a Romênia se trata de belas casas antigas caindo aos pedaços, demonstrando a decadência pós-comunista em que o país encontra-se), com seus diálogos amplos e longos, com seus enredos cada vez mais interessantes e com uma forma ímpar de contá-las, é que este romeno está conquistando cada vez mais espaço no cinema mundial, porque sempre haverá muito a dizer sobre os males do ser humano.
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