Embora Chris Columbus tenha feito um trabalho decente com os primeiros Harry Potters, do que a série precisava mesmo era de um diretor com culhões para imprimir a sua visão do universo de Rowling, e não apenas dirigir conforme o que está no livro. Este diretor foi Alfonso Cuarón, que imprimiu seu próprio estilo ao filme, jogou as regras pela janela, e criou um grande trunfo da imaginação – sem tirar o mérito de Rowling, é claro.
O universo de Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban não se limita apenas a um sem-número de nomes, algumas criaturas e muitas locações. Os limites são os da imaginação. É um universo sem regras, dominado pelo absurdo. O filme já nos mostra em seus minutos iniciais duas sequências que ilustram seu total descaso com a realidade: na primeira, Harry, em um acesso de raiva, faz com que sua detestável tia se transforme em um balão (algo próximo do que seria uma esquete moderna de Terry Gilliam). Na segunda, ele foge e acaba entrando por acidente em um triple-decker dirigido por um motorista insano, quase cego, auxiliado por uma cabeça encolhida jamaicana falante. O ônibus em questão, o Knight-Bus, segue na contramão em uma velocidade alucinada, parando o tempo ao redor quando preciso e se espremendo – literalmente – para passar por um espaço mínimo entre dois double-deckers trouxas. Enquanto isso, seus passageiros – com exceção de Harry – dormem despreocupados em camas luxuosas. "E os trouxas? Eles não conseguem nos ver?", Harry pergunta, e as respostas do cobrador e da cabeça encolhida são simplesmente: "Ah, eles não veem nada mesmo, né?", "Não, mas se enfiar um garfo neles, eles vão sentir." Com este diálogo, Cuarón nos mostra que o absurdo é o comum para os habitantes daquele universo, e que por isso mesmo a verossimilhança para com o nosso é descartável. O didatismo não seria só desnecessário, seria condenável.
Ao longo do filme, nos deparamos com uma salada de elementos da mitologia de Rowling, alguns por ela criados, outros sendo a versão dela de conceitos já estabelecidos: quadros cujos habitantes se movem (e que interagem entre si, possuindo personalidade e vontade própria), um lobisomem, um hipogrifo*, dementadores*, um salgueiro-lutador* e viagem no tempo (cuja composição visual é genial, e as sacadas de roteiro envolvendo a sequência deixariam Zemeckis orgulhoso) compõem a trama principal, e de quebra ainda temos um livro-monstro*, fantasmas, um bicho-papão*, Quadribol*, e outras invencionices de Rowling e Cuarón – que merece aplausos não só por sua transição dos elementos fantásticos do livro para as telas, mas também por algumas ideias que, embora pequenas, em muito adicionam ao já riquíssimo universo do longa. Não são somente as invencionices maiores que tornam este mundo fascinante, são também os detalhes: detalhes como ver um cavaleiro fantasma roubando a cabeça do outro pelos corredores, ou em acompanhar a interação dos inúmeros quadros presos nas paredes do castelo, ou apenas em ver objetos voando ou se movendo sozinhos ao fundo.
Com tantos elementos fantásticos e surreais, um erro comum seria não conferir ao filme qualquer teor narrativo. Cuarón, entretanto, acerta ao tornar Harry, além de protagonista e nossos olhos naquele universo, a principal ferramenta-narrativa do filme. Seu desenvolvimento emocional é o que move a trama, o que amarra seus pontos. Outra decisão louvável é a de demonstrar a passagem do tempo através do salgueiro-lutador, e assim, mesmo o filme tendo um ritmo alucinado, não duvidamos que um ano tenha se passado para Potter ao final.
E é incrível como Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban não só tem um universo fantástico, mas também se estabelece como um filme extremamente poético. Os dementadores surgem como alegoria do medo, dos fantasmas do passado, e o jeito de derrotá-los é justamente encontrando luz nas trevas, focando nas boas memórias – e é curioso que a lembrança mais poderosa de Harry seja uma de que ele nem tem certeza se é real. Se nos primeiros filmes Harry se mostrava um herói por impedir o retorno de Voldemort, neste ele se mostra um herói ao se focar para vencer seus medos, traumas e inseguranças, ao invés de ficar apenas contemplando sua infelicidade. O tempo tem um papel importante no filme, não só pela trama, mas pelo peso que o passado tem sob os personagens: Lupin vê Harry como o amigo que perdeu, e Harry vê Lupin como pai que nunca teve. É um conto sobre amadurecimento, superação de traumas (assim como de qualquer momento difícil da vida) e a conciliação da nostalgia – dentro de limites, é claro, afinal, não podemos viver no passado como Harry e Lupin fizeram – com o otimismo em relação ao presente e futuro.
Com uma paleta de cores frias, um jogo de sombras impressionante e elementos góticos como nevoeiros e luas cheias, este se estabelece como o Harry Potter mais sombrio e carregado de tensão até então – e a onipresença dos dementadores e de Sirius Black, que aparece por meio de jornais, placas na parede e afins, é um fator crucial para a sensação de perigo constante. O trabalho de câmera de Cuarón (com destaque para a cena em que a câmera se aproxima do espelho de um armário, entra pela imagem nele refletida – que se torna a imagem real – e passamos a acompanhar uma aula a partir daí) também ilustra o amadurecimento visual da saga.
O restante da parte técnica também está infalível: os efeitos visuais continuam impressionantes até hoje (destaque para o hipogrifo) e a trilha sonora de John Williams pontua os momentos mais surreais de forma precisa, assim como cria faixas memoráveis para as cenas mais reflexivas e emotivas. Quanto à direção de arte, ela novamente é destaque, expandindo os sets já existentes, criando novos e se aproveitando das belíssimas paisagens naturais da Escócia. É um filme belíssimo aos olhos e aos ouvidos, o que é crucial para a criação de um mundo fantástico e para o desenvolvimento de seu teor poético.
Se os dois primeiros filmes da franquia Harry Potter tinham sido apenas trabalhos decentes, o mesmo não se pode dizer a respeito de Prisioneiro de Azkaban: este não é apenas um bom filme de fantasia e aventura – é uma grande obra de criatividade e poesia. Um filme pelo cinema, pela literatura, pela imaginação.
GLOSSÁRIO:
* Bicho-papão: Ser uniforme que assume a forma do maior medo da pessoa mais próxima.
* Dementadores: Seres encapuzados que sugam a felicidade das pessoas.
* Hipogrifo: Mistura de águia com cavalo
* Livro-monstro: O "Livro Monstruoso dos Monstros" é um livro sobre criaturas mágicas, só que vivo, e bem agressivo.
* Quadribol: Esporte bruxo jogado em cima de vassouras voadoras.
*Salgueiro-Lutador: Salgueiro com vontade própria, que ataca quem se aproxima com seus galhos e raízes.
Trouxas: Não-bruxos.
Gosto não se discute, e devemos respeitar os dos outros... Mas eu concordo com você que é um ótimo filme.
Ótima crítica. Esse filme em blu ray é ainda mais belo.