CLÁSSICO ABSOLUTO DO TERROR, HELLRAISER É UM FILME MUITO BEM REALIZADO E ATÉ DEMOCRÁTICO AO DIVIDIR OS MÉRITOS DE SEU SUCESSO
- "Qual seu desejo, senhor?"
- "A caixa..."
- "Leve-a. É sua." ... "Sempre foi..."
Filmes de terror são um caso à parte na indústria desde que o cinema é cinema. Geralmente mais engraçados do que assustadores, muitos exemplares tornaram-se clássicos simplesmente por serem extremamente divertidos e inverossímeis. São, em geral, filmes de baixíssimo orçamento e qualidade, com roteiros esdrúxulos e atuações tenebrosas capazes de darem muito mais medo do que o próprio enredo do filme em si. Porém, é inegável que alguns exemplares sobressaem-se dentro do gênero, por "N" motivos, sem pender para o lado da diversão ou da comédia, como aconteceu em Brinquedo Assassino, A Hora do Pesadelo e Sexta-Feira 13. No caso de Hellraiser - Renascido do Inferno (Hellraiser, 1987) há um conjunto de fatores que colaboram para status que o filme alcançou. Não que Hellraiser não seja um típico representante do cinema de terror de categoria B (esses filmes de terror, principalmente os ruins e mal feitos, viraram sinônimo de cinema B, como se não houvessem representantes de outros gêneros para esta categoria). Muito pelo contrário. Os péssimos atores e suas interpretações asquerosas estão presentes (embora Andrew Robinson se saia muito bem). Mas no caso de Hellraiser os pontos positivos se sobressaem aos negativos.
E não há como falar de Hellraiser sem destacar, primeiro e acima de tudo, sua excelente música tema composta e tocada por Christopher Young e sua ótima trilha sonora em geral. Com, no mínimo, cinco temas diferentes, Young tira o máximo que pode de cada cena e situação para sua trilha, exaltando o propósito de sua atmosfera (tensão, medo, desespero, claustrofobia, incerteza, delírio, etc) e condensando potencialmente suas possibilidades. A épica música de abertura já nos coloca em um estado de alerta desde o primeiro segundo de filme, assim como na clássica (e minha favorita) cena do renascimento de Frank (Sean Chapman). Excepcional!! Uma das grandes trilhas do cinema de terror, sem a menor sombra de dúvidas.
Outro grande responsável pelo sucesso do filme foi o diretor e roteirista Clive Barker. Dono de uma carreira limitadíssima e marcada por insucessos, Barker nos deixou uma das obras mais relevantes dentro de um gênero que possui um infindável número de adeptos, fiéis e fervorosos. Investindo em uma ótima preparação - após a cena inicial da morte de Frank -, Barker se mostra um cineasta bastante conciente e seguro ao conduzir o material que tem em mãos. Se não obtém lá muito sucesso dirigindo seu elenco, que é bem ruim, Barker tem absoluto controle das cenas que dirige e manda muito bem no comando destas, exalando uma tensão absurda em algumas delas, como na cena em que Larry (Andrew Robinson) tenta uma investida amorosa na cama com Julia (Clare Higgins), sob aluz dos trovões e relâmpagos da tempestade, e ao fundo, por suas costas, Frank, empunhando sua faca, aproxima-se vagarosamente até parar aos pés da cama e estripar um rato com a lâmina, para depois retirar-se andando de costas até sumir por completo nas sombras. As unhas acabam-se e a espinha com esta cena. Algumas outras cenas igualmente tensas são desprovidas de qualquer trilha sonora, acompanhadas unicamente pelo som do pulsar quase letárgico de um coração, fazendo com que o nosso quase salte pela boca. Barker elabora muito bem suas tomadas e seus planos, sempre visando enriquecer aquilo que será mostrado, principalmente antes de ser mostrado, como pode ser notado na cena do primeiro assassinato cometido por Julia, na tomada onde a vilã vira-se para a câmera de martelo em punho em um close digno de pôster ou capa de DVD. Ótima cena, muito ajudada também pela fotografia de Robin Vidgeon, que ilumina muito bem as cenas de terror, valorizando as expressões de perversidade e sofrimento dos personagens envolvidos, embora peque um pouco nas tomadas externas, onde o brilho de certos objetos ofusca um pouco certos pontos do cenário ou mesmo dos personagens. Mas o trabalho de Barker na elaboração e filmagens das cenas é mesmo o destaque técnico do filme. Pode ser na cena em que acompanhamos Kirstie (Ashley Laurence) caminhando pelas ruas, ou nas cenas filmadas na escada do interior da casa de Julia e Larry - certamente a escada é a parte do cenário mais presente do filme - onde sua câmera passeia de andar para andar, mostrando ações simultâneas e dando àquele charme especial às cenas e ao filme como um todo. Mas o ápice de seu trabalho como idealizador e realizador das filmagem se dá na cena do pesadelo de Kirstie. Uma das mais belas cenas que já vi em um filme de terror. O ângulo, a movimentação da câmera, a música e a tensão criada resultam em uma cena que, sem a menor sombra de dúvidas, poderia ser usada como trailler do filme sem problema algum. Tiro meu chapéu para este trecho do filme. É a cena mais bem filmada da série toda.
Se a direção de Barker é destaque no filme, a edição de Richard Marden não fica nenhum pouco atrás. Sem se prender à um padrão dentro da obra, ora ele opta por cortes rápidos, ora ele deixa a cena fluir como se fosse filmada num take só (e quem garante que não?). E Marden, assim como Young e Barker, também se permite um momento de glória no filme. O que dizer da belíssima montagem da cena em que Larry corta a mão no prego na escada, enquanto Julia relembra seus momentos mais quentes com Frank nas vésperas de seu casamento com Larry? Uma perfeita harmonia entre música, direção e edição que merece aplausos.
Embora a produção de Mike Buchman e Christopher Figg e a maquiagem e os efeitos de Bob Keen não atinja um nível tão bom quanto os demais aspectos técnicos do filme, certos pontos e detalhes não passam despercebidos pelos envolvidos. O detalhe da cor dos olhos dos irmãos Larry e Frank não foi ignorado. Frank tem olhos negros, enquanto Larry possui olhos azuis. Para nos ajudar a entender que Frank matou Larry e vestiu sua pele, aos poucos notamos um sangramento latente nas extremidades do corpo do personagem. Mas o detalhe revelador não só para nós, mas para Kirstie também, é o close no rosto de Larry onde podemos notar seus olhos negros. Ótima sacada da equipe. Pena que, com medo de que este detalhe passasse em branco, a equipe acrescentou a fala "come to daddy", muito usada por Frank, não eixando dúvidas da real identidade do vilão. E a maquiagem consegue um ótimo resultado em dois momento em especial. Um se dá no momento da morte de Larry/Frank, preso pelas correntes dos Cenobitas. Uma cena muito bem feita acompanhada por uma das falas mais clássicas da série, dita por Larry/Frank antes de ser despedaçado: "Jesus Wake Up", incompreensivelmente traduzida para "Jesus chorou" na dublagem. E o outro momento de destaque se dá nas cenas de Frank, ainda em estado de recomposição de seu corpo, isolado no sótão da casa de Larry. Um trabalho realmente acima da média para o gênero.
E se por vezes Julia lembra aquelas vilãs de novelas mexicanas do tipo Maria do Bairro, pode-se dizer que ela é igualmente dramática. Mesmo tendo conciência e noção de que ela é a vilã da trama, é notável que Júlia é uma mulher infeliz. Nada do que o apaixonado, dedicado e submisso marido Larry possa oferecer é suficiente para suprir este vazio que consome sua personagem. Algo que, inexplicavelmente, o perigoso e fracassado Frank foi capaz de lhe conceder. Isso fica evidente cada vez que o inocente - e porque não pateta - Larry pronuncia o nome do irmão e a câmera foca nas expressões e reações de sua mulher. E essa questão, o drama familiar dos protagonistas, se faz presente de forma marcante até próximo do final, mostrando que o roteiro de Barker não se apoia somente no gore para se sustentar. A trinca de "adultos" do filme - Larry, Julia e Frank - é muito bem trabalhada, recebendo toda a atenção possível do roteiro para nunca caírem na unilateralidade, sempre com suas ações bem fundamentadas dentro da proposta do filme. Quem fica atrás mesmo é a inocente e bobinha Kirstie, alçada ao papel de heroína da estória quase que por acidente. Além de muito mau interpretada pela estreante Ashley Laurence, Kirstie não tem seu background muito bem definido (afinal, por que esta insistência em não morar com o pai? Por que ela diz que "é algo que ela precisa fazer"? Qual o teor de sua relação com Julia?) e sua participação na trama era quase nula até certo ponto, quando acaba topando com seu renascido tio Frank e os Cenobitas.
Os antagonistas da trama, estes Cenobitas, andam sob uma tênue linha, indefinida e indivisível entre vilões e heróis, por assim dizer. Tanto podem punir a mocinha, como podem expurgar o vilão, basta serem invocados. Sua mitologia é fantástica. Como eles mesmos se definem: "demônios para alguns, anjos para outros". São provedores de prazeres e sofrimentos indescritíveis e indivisíveis da alma, provindos do inferno de cada alma. Posteriormente no filme O Caçador do Inferno, entenderíamos melhor esta condição ao acompanharmos o líder dos Cenobitas (que viria a ficar conhecido como Pinhead, sempre interpretado por Doug Bradley) auxiliar o protagonista a libertar-se, por assim dizer, de sua condição e partir ruma ao próximo plano. Aqui, em sua primeira aparição no cinema, os Cenobitas apenas estão interessados em reaver a alma do fugitivo Frank, mas seu universo e sua história seria amplamente explorado e até distorcido nas seqüências Hellraiser II - Renascido das Trevas (Hellbound, 1989), Hellraiser - Inferno na Terra (Hellraiser - Hell on Erth, 1992) e Hellraiser - A Herança Maldita (Hellraiser - Bloodline, 1996) onde conhecemos suas origens e a razão de sua existência (em certos momentos atuando até como heróis da vez) e a origem da misteriosa caixa de enigmas. Seu visual destorcido e amedrontador, vestindo couro e ornamentados com ferramentas de tortura dos mais variados tipos e formas, tornaram-se uma referência dentro do gênero e da cultura pop do cinema.
Outra referência deixada pelo filme, foi o cenário infernal invocado junto aos Cenobitas com as clássicas correntes que surgem das trevas para despedaçar suas vítimas de maneira cruel e sanguinária. A última referência feita à elas de que me lembro, foi ao final da terceira temporada da ótima série de TV da Warner Supernatural, onde o personagem Dean (Jansen Ackless, de Dia dos Namorados Macabro) chega a debochar da proximidade de sua ida para o inferno dizendo que estava preparado, pois já havia assistido Hellraiser. E a penitência infernal apresentada no último episódio é uma clara referência/homenagem ao filme.
Hellraiser pode não ser o melhor filme de terror já feito, longe disso, mas com certeza está muito acima da média e marcou mais de uma geração, permanecendo vivo e forte até os dias de hoje como um clássico absoluto do gênero. E só pra constar: aposto que depois de assistir Hellraiser, você nunca mais vai querer resolver um cubo mágico de novo. Acredite.
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