Todo poder aos corajosos filmes políticos.
Há muito tempo que Hollywood vem sendo acusada de uma conspiração esquerdista-judaico-dominadora-global. Na realidade isso não acontece agora, mas pelo menos desde o fim da década de 1960, quando o casal de foras da lei mais famoso das telonas fez um sucesso tremendo. Bonnie and Clyde, de 1967, não foi a primeira vez em que os subversivos tiveram vez – e sucesso – no cinema dos Estados Unidos da América. Não. Mas certamente foi um belo marco inicial, o estopim dos inconformados com o sistema que hoje entrega-nos algo como BlacKkKansman, em bom português Infiltrado na Klan.
Que os Estados Unidos é um país construído em cima do racismo, assim como o Brasil, todo mundo sabe. Mas que um dia, um policial negro (algo já impensável dentro da cultura dos Estados Unidos até a metade do século XX) iria estar infiltrado na KKK, organização racista, isso ninguém sabia. E ninguém melhor que Spike Lee para nos contar essa loucura.
Spike Lee retorna em grande forma depois de trabalhos de não tão relevante sucesso e conteúdo. Lee configurou o cinema do fim da década de 1980 e o início da de 1990 como um grande cineasta promessa, dos EUA e do globo, junto com nomes como Quentin Tarantino por exemplo, que faziam a cabeça da juventude e despontavam, a cada filme que lançavam, como o provável filme do ano, levando até mesmo a uma certa rivalidade entre fãs dos dois cineastas. Coisa típica da puberdade. Mas o seu novo trabalho, muito acima de remake's de sucessos sul-coreanos, está além talvez até de sua carreira, é um filme manifesto. Não pensei que fosse quando comecei a assisti-lo, ou quando descobri que seria lançado. Mas é, é um cinema protesto, o legítimo. Não tem a necessidade natural de ganhar um Oscar de melhor diretor e sumir em 2019 ou 2020, embora isso possa acontecer (ganhar o prêmio). Não tem como necessidade arrancar alguns cifrões, lotar algumas salas e depois se desfazer da memória alheia. Se assim fosse, não seria um cinema "porradão", latente. E latente é BlacKkKansman.
Por quê? Os Estados Unidos, o Brasil, a Hungria e o mundo descobriram que a cadela do fascismo está novamente prenha. Sempre esteve e o acontecimento de Charlottesville, no Estado da Virgínia (que tem esse nome por causa da Rainha Virgem Isabel I da Inglaterra), onde supremacistas brancos e antirracistas, socialistas, comunistas e social-democratas entraram em um confronto bastante violento. Com direito a um atropelador em massa condenado a prisão perpétua. Conhecido como Old Dominion, o Estado da Virgínia é importante para a história dos Estados Unidos da América, é basicamente o berço da colonização britânica, ou seja, do surgimento da nação que hoje – e já há algumas décadas - coloca regras no mundo. Daí a importância basilar de um confronto entre racistas e progressistas.
Spike Lee critica tanto Donald Trump por seu racismo e proximidade com a Ku Klus Klan, que por poucas vezes chega a citar o nome do presidente, e a sua maior crítica ao presidente laranja da sua nação certamente se encontra presente neste filme. Não necessariamente aos seus atos políticos, mas ao que representa como homem do país eleito pela democracia.
James Fields, o atropelador, estava em seu carro com uma mensagem escrita assim: “Não somos nós que temos que ter medo” e ao lado dessa mensagem, uma foto de ninguém mais ou menos do que Adolf Hitler, sim, exatamente. A manifestação de supremacistas brancos, ocorrida em 2017, foi organizada por causa do derrubamento da estátua do general sulista Robert Lee (olhem a curiosidade do sobrenome, o mesmo do cineasta). O problema, depois do confronto, ficou ainda mais crítico e problemática quando Donald Trump foi falar, e falou várias vezes, distorcendo o que tinha dito anteriormente, como geralmente faz. Depois de um silêncio de 48 horas, depois de imagens como uma suástica nazista iluminando à noite em chamas que assustaram o mundo, Trump decidiu mostrar qual lado defendia: culpou ambas as partes. A crise evidenciou, levando a uma enxurrada de críticas até mesmo de liberais e uma quase hecatombe social.
Mas o que diabos tem a ver tudo isso com um filme sobre um policial negro nos anos 1970? É que a história é um rio que segue, às vezes desviando do percurso, abrindo novas passagens, mas sempre voltando ao mesmo lugar, e Spike Lee sabe disso. E eu, e muitas outras pessoas, sabem que Infiltrado na Klan não é sobre um Ron Stallworth, interpretado John David Washington, que acaba ficando amigo do policial judeu Flip, interpretado por Adam Driver contra a ótima atuação do finlandês Jasper Pääkkönen, na pele de um supremacista branco doidão e machista chamado Felix Kendrickson. É, aham, não é sobre nenhum deles em específico. Mas se não todos.
É um chamado à luta, a mesma de Ron Stallworth, contra a opressão racista, por dentro ou fora do sistema, como preferir a bela Patricie (Laura Harrier), militante negra. Porque é essa a história do filme, a diferença evidente entre Patricie e Ron, um casal negro que se conhece através de suas causas – profissionais ou não -, suas lutas. Com a pequena diferença que um luta por dentro do sistema (as forças opressivas/racistas da polícia) e a outra por fora, em uma organização negra que busca inflar uma luta armada para conquistar os seus direitos – uma típica resistência violenta dos tempos de guerra fria.
Quando Ron, logo no começo do filme, enfrenta com seriedade e clareza o racismo típico da instituição policial na localidade a que oi enviado, ele está enfrentando o racismo por dentro do sistema; quando Ron busca a amizade com seus colegas e não a indiferença, ele está unindo pessoas contra uma segregação que a ele poderia impedir o próximo passo, e então, o próximo passo: Infiltrado na Klan. A subversão total e inimaginável, que beira o psicodélico dos tempos em que vive, de um afro-americano dentro da instituição mais repressiva contra afro-americanos. “Ele fala como nós”, diz o principal figurão da KKK - tirado mais para palhaço no filme de Lee do que para um vilão de novela das 20 horas, porque é exatamente o que ele é. E é exatamente como deve ser tratado. Na arte, ou não.
David Duke, o vilão-palhaço da película, é a grande liderança histórica da nova KKK, renascida em 1915 após o enfâme e revolucionário (em questões cinematográficas) O Nascimento de Uma Nação (The Birth of a Nation) de D. W. Griffith. Negador do Holocausto, condenado por fraude, evasão fiscal e grande odiador de figuras como Luther King, coube ao seu papel ser interpretado por Topher Grace (Homem Aranha 3, Interestelar). Na cena mais icônica do ano, quando Ron revela a sua verdadeira identidade por telefone a Duke, a graça está no silêncio da sala de quem se sentiu enganado pela própria mentira que resolveu fazer de sua vida uma causa. A bizarrice de quem formou a sua vida política em negações nonsenses, ser fruto de uma história tão bizarra quanto ser enganado por um negro, põem em cheque não só aquilo em que acredita, mas em aquilo em que crê ser. Termina na película como uma figura desmoralizada, mas ainda a ser temida.
Como citado por alguns críticos, um grande aspecto positivo dessa obra é a forma como trata a instituição Polícia dos EUA. Já que não trata todos como bondosos e malvados, mas como uma instituição corrupta de cima para baixo, que serve a grandes interesses capitalistas e nacionais, mas que possui em seu meio, grandes homens com pequenos poderes para mudar quaisquer coisas, mas que nem por isso abaixam a cabeça. Lembrando que Ron nada conseguiria, fisicamente falando, sem a ajuda de um terno policial branco, o judeu que não sabe bem o que significa ser um judeu, e seu amigo Flip.
Lee escolheu muito bem a história/estória e escolheu muito bem o momento para contá-la. Não por acaso David Duke avalia positivamente quase tudo aquilo que Trump é, como elogiou o atual presidente eleito do Brasil, Jair Bolsonaro: “Ele soa como nós” – quase o mesmo que disse para Ron, por telefone. Se ganhar algum Oscar ou Globo de Ouro, qualquer coisa relevante, que bom, é importante, porque Spike é exatamente isso, um infiltrado. Ninguém deu a Lee os roteiros excelentes que construiu em todos esses anos, ele precisou fazer a coisa certa, não é fácil para um negro nos Estados Unidos conseguir uma posição importante, ainda que no mundo da arte. Eu sei, e muitos outros sabem a que papel foi entregue o negro no cinema dos Estados Unidos, e o quão difícil é não só ser um diretor, mas um diretor de filmes sérios e relevantes. Ainda mais no mundo do cinema hollywoodiano, que ao contrário do que dizem alguns, não é tão plural e democrático assim, embora com a pressão dos ventos venha mudando, afinal, tudo o que é sólido desmancha no ar. Menos a resistência, porque essa faz parte das consciências, que viram ações, que viram história, que viram filmes e que viram novas lutas. E aí está o velho e novo papel do cinema político: unir-nos!
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