“Com o suor do seu rosto você comerá o seu pão, até que volte à terra, visto que dela foi tirado; porque você é pó e ao pó voltará. ” (Gênesis 3:19)
Interestelar, à primeira vista, é surpreendente vindo de Nolan. O atual mestre do dito “cinema comercial” – tipo de filme que acabou ganhando conotação negativa com o passar dos anos, mas que não necessariamente significa de má qualidade – se dedica a um projeto mais intimista e autoral. Por outro lado, ao se olhar para o filme com mais atenção, percebe-se Nolan em toda extensão da obra. É um projeto extremamente ambicioso, de fato, mas não seriam também: Amnésia, por sua narrativa altamente inovadora; A Origem pela complexidade de sua trama e a grandiosidade que almeja; e a Trilogia Batman, pela reinvenção de um personagem há décadas enraizado na cultura popular? Nolan, assim como Hitchcock (sei que a comparação, em termos gerais, é pobre, porém útil ao raciocínio), sempre vestiu a máscara do “cinema comercial” enquanto buscava algo além do puro entretenimento.
Enfim, Interestelar... O filme parte de estudos científicos reais – aqui Nolan se complica, expondo sua obra aos observadores de plantão que dissecarão o filme em busca de erros científicos, que certamente existirão, afinal ele é um cineasta, não um cientista da NASA – para contar a história de um grupo de cientistas/pilotos que, em meio a um futuro distópico no qual a Terra não é mais um habitat aceitável para a raça humana, parte em uma viajem interestelar em busca de um novo planeta para a humanidade. Basicamente é isso, mas os irmãos Nolan (Christopher e Jonathan, seu irmão e frequente colaborador como roteirista) embrulham essa temática com poesia e outros temas reflexivos e (impossível fugir dessa palavra ao falar desse filme) ambiciosos, numa tentativa – esclarecida pelo próprio diretor/roteirista – de homenagear seu filme favorito: 2001: Uma Odisseia no Espaço.
A meu ver, o roteiro foi o ponto decisivo da ambiguidade com a qual o filme foi recebido – entre ótimos elogios e severas críticas. Ao mesmo tempo em que apresenta uma história interessante e com vários pontos positivos, o roteiro se perde em alguns momentos em tentativas de explicações racionais para eventos praticamente inexplicáveis e confusos, principalmente no último (e pior) ato do filme, de tal forma que não foi “digerível” pelo espectador. Além disso, o roteiro apresenta alguns clichês desnecessários e carrega alguns maneirismos da veia comercial do diretor.
Por outro lado, os pontos positivos do roteiro falam bem alto. Gostei especialmente do futuro apocalíptico proposto pelos irmãos Nolan: a Terra sendo coberta pelo pó, esgotando seus recursos naturais de tal forma que há um retrocesso da civilização, agora não são mais necessários engenheiros ou cientistas, mas sim fazendeiros. O avanço tecnológico e científico, no filme de Nolan, não levou a Terra à um apocalipse nuclear, sombrio ou caótico (como são retratados em 90% dos filmes), mas sim à um colapso, levando o mundo a retroceder no tempo, voltando ao trabalho braçal e à luta pela sobrevivência.
Nolan aproveitou o potencial contemplativo da obra e criou belos momentos, acompanhados da ótima trilha sonora de Hans Zimmer – que há tempos estava na mesmice, mas voltou a se destacar nesse filme. A montagem, ainda que tenha sido mais lenta que o padrão, seguiu o estilo do diretor, intercalando cenas numa tensão crescente. Todo trabalho visual, como se esperava, foi de alto nível, com uma bela direção de arte e uma ainda melhor fotografia, que alterna entre um estilo sombrio à lá Gordon Willis, o “príncipe da escuridão”, – com o perdão da comparação – principalmente nas cenas passadas na Terra, e um estilo mais deslumbrante para as cenas passadas no espaço ou nos outros planetas.
No fim das contas fica bem difícil avaliar Interestelar, pois é um filme que equilibra pontos positivos bem fortes com outros bem negativos. Fato é que Nolan não se comprometeu 100% à esta nova linha e manteve ainda algumas de suas marcas mais comerciais, que ficaram um pouco deslocadas no filme. Acredito, todavia, que ele mostrou ter condições de evoluir como um diretor mais contemplativo, caso insista, e se comprometa mais, nessas mudanças.
Texto originalmente publicado no meu blog:
http://www.criticpop.blogspot.com.br/2014/11/critica-interestelar-interstellar-2014.html
Nolan não decepciona nunca. Que belo filme e texto muitíssimo bem escrito.