O medo da AIDS já é exposto no título do filme, onde o letreiro que lembra sangue já faz a função de mostrar que a obra entregue por Ferrara vai muito além de um filme de terror que brinca com a teoria da conspiração e com o subconsciente do público, criando cenas realmente assustadoras (como a de início, onde a menina é encurralada por um oficial do exército que lhe diz coisas aparentemente sem sentidos) e a constante paranóia (afinal, em quem podemos confiar?), mostrando ainda um ótimo retrato dos adolescentes nos dias atuais. Mas, acima de tudo, é um dos filmes mais cruéis e chocantes de Abel Ferrara.
A trama gira em torno de uma jovem (Gabrielle Anwar) e sua família que se mudam para uma base militar por conta do trabalho de seu pai. Depois de suspeitar do comportamento estranho de alguns habitantes daquele local, ela descobre que alienígenas vêm trocando pessoas por cópias perfeitas e sem sentimentos, preparando-se para uma grande invasão.
Seus temores, dúvidas, instintos, conflitos internos (na abertura, onde a menina lê um livro e fala de suas angústias na viajem com seu pai, uma criança aborrecente e a substituta de sua mãe) e externos (a amizade com a amiga punk, sua sexualidade aflorando) e sua beleza jovial desenfreada. Tudo isso mesclado num universo sujo e sombrio na eterna visão niilista do diretor.
Body Snatchers também é uma obra rica em simbolismos, no pai da jovem trabalhando na parte de PROTEÇÃO, na conduta do exército (e é brilhante o uso do campo militar para expor que a semelhança no comportamento de todos no mesmo local pode ser bem perigoso) e o luto pela raça humana (simbolizado por Meg Tilly após ser possuída pelos seres estranhos que habitam aquele local).
Afinal, o que resta neste universo criado pelo diretor? MEDO! Medo de ficar, medo de sair, medo de ir a escola, medo de dormir, medo de acordar, medo de se envolver, medo de quem está próximo, medo de quem está longe, medo de não conhecermos mais uns aos outros, medo de tudo, inclusive de nossa consciência. O horror, tão citado pelo Coronel Kurtz em Apocalypse Now, emergindo em plena década de 1990.
No primeiro filme, a teoria da conspiração é claramente relacionada a paranóia das pessoas com o comunismo e as perseguições feitas na época do McCarthismo. Pois bem, citei a cena do personagem de Brando na obra-prima de Coppola aqui, pois Ferrara insere uma crítica social bastante ácida em seu longa, relacionando o sentimento daqueles homens na Guerra e seu filme, ainda fazendo um comentário de forma indireta sobre a conformidade da política internacional da era pós-Guerra Fria, de George Bush, chamada "Nova Ordem", imposta pelos militares norte-americanos.
O elenco está excelente, com destaque para a ótima atuação de Forest Whitaker (magro e bom ator), de rever Lee Emery como um oficial do exército e na bela, sensual e excelente Gabrielle Anwar (que não entendo o motivo da carreira não ter decolado como a de Julia Roberts ou Sandra Bullock), que mostra perfeitamente a gama de sentimentos de sua personagem, que vai da garota tímida e assustada, passando pela jovem corajosa e indo até seu olhar devastado pela ausência de esperança.
Ferrara concebe um de seus melhores trabalhos na direção, oferecendo ótimos ângulos de câmera (a cena envolvendo um helicóptero é absurdamente perfeita), dando closes perfeitos nos olhares das pessoas e capturando de forma inteligente as reações e sentimentos dos personagens, além de aproveitar a parte técnica irretocável, que vai da belíssima fotografia ao uso certeiro da trilha sonora grandiloqüente, que acompanha o filme de forma pontual e precisa.
E o que dizer do roteiro, que capta a essência da obra de Jack Finney, mostrando todo o processo de "seleção" que os vagens fazem, através de desenho (cor de sangue), da manipulação dos personagens (tentando a todo custo fazer as pessoas dormirem) e tentando cercar todos os habitantes que ainda não foram possuídos por aqueles seres (o que não é difícil numa base onde pessoas se vestem com o mesmo uniforme e agem de forma semelhante), criando enormes possibilidades para criar situações de genuíno terror.
Ao final da projeção, percebemos que aquela situação nunca terá um desfecho, que talvez as pessoas que escaparam nunca terão paz, pois o lugar onde vivemos virou um antro de desconfiança, medo, desapego e que nem sequer o amor entre duas pessoas poderá salvar o mundo de toda podridão que nos foi imposta... Afinal, Ferrara é um eterno niilista e em seu mundo sujo, coberto por um manto de violência, pode se encontrar de tudo, exceto a esperança por um final feliz.
Comentários (0)
Faça login para comentar.
Responder Comentário