A eterna relação de conflito entre dramatização e realidade, documentada por um dos melhores cineastas do Brasil.
Eduardo Coutinho, diretor com mais de 40 anos de cinema, tendo trabalhado como repórter da TV Globo na década de 1980, sempre prestou serviço a temas políticos, sociais e humanos nos seus projetos documentais, que o consagraram ao longo de sua vida. Entre os trabalhos mais reconhecidos, estão Cabra Marcado Para Morrer [idem, 1984] e Edifício Master [idem, 2002], ambos mostrando relatos da vida de pessoas comuns que formam, de alguma maneira, a história de nosso país. Em 2007, Coutinho nos brindou novamente com outro filme documental, mas, dessa vez, trabalhando com as duas formas de filmagens: a dramatização de uma história e a retratação daquilo que chamamos de vida real. Em Jogo de Cena, Coutinho desafia as leis do estilo documental, trazendo em cena várias histórias que nos fazem indagar sobre a complexa relação que existe entre realidade e ficção, verdade e mentira, o real e a atuação.
A projeção começa com um anúncio procurando por mulheres com histórias para contar sobre a vida e que queiram participar de um documentário. As selecionadas foram entrevistadas pelo próprio diretor e filmadas no Teatro Glauce Rocha, localizado no Rio de Janeiro. As histórias contadas por cada uma delas variam desde temas como gravidez, relações familiares e conjugais, arrependimentos e sonhos. Para um observador menos atento, o filme trata-se nada mais, nada menos de histórias de mulheres comuns, batalhadoras, que sofreram na vida e que estão ali para nos contar fragmentos na vida. Mas a partir do momento em que atrizes experientes e conhecidas pelo público entram em cena e começam a interpretar os relatos das entrevistadas, percebemos que Jogo de Cena é uma obra bastante peculiar na produção audiovisual nacional.
Trabalhando com uma técnica de montagem, Coutinho põe em cena ora a mulher real entrevistada, ora a atriz dramatizando o papel que lhe foi dado. Essa técnica, primeiramente, funciona apenas para comparar a atuação com o real, mas, ao decorrer dos minutos e com o desenrolar dos depoimentos, as performances das atrizes vão se transformando num mimetismo comportamental. Esse comportamento nada mais é do que uma “imitação inconsciente” que um indivíduo faz de outro, levando em conta gestos e palavreados da pessoa. Ao interpretar aquelas mulheres comuns, as atrizes criaram um laço de aproximação não somente com as histórias contadas por elas, mas com os seus gestos, os movimentos, a pronúncia e as lágrimas. Em meio de suas interpretações, as atrizes param para dar depoimentos pessoais sobre o que está ocorrendo em suas cabeças e sobre a experiência que estão passando. Andréa Beltrão chega a se comover com o depoimento da mulher que interpreta e chora em sua atuação. É nesse ponto que Coutinho mostra e nos faz questionar sobre o papel de um ator (seja de teatro, cinema ou televisão) em cena. Até que ponto aquela ficção que nos é apresentada pode ser real? O quanto há de realidade numa ação reproduzida? Tais questionamentos só nos fazem ter mais perguntas.
Os temas dos depoimentos são semelhantes entre si, envolvendo sempre questões familiares, entre mães e filhos, filhas e pais. A opção pelo elenco feminino foi feita corretamente, pois Coutinho sabia que as mulheres podem ser capazes de dar mais veracidade às suas histórias, entregando mais detalhes e, geralmente, não ocultam algumas verdades constrangedoras, fazendo com que as histórias contadas no filme sejam carregadas de sinceridade. Em relação a isso, há um ponto importante em observar, que se trata da subjetividade das histórias. Ao relatar um acontecimento de nossas vidas, há sempre uma dose de representação na nossa fala, causada por algo que vimos na ficção. É o que acontece com um das mulheres no documentário, quando fala da trama de um filme que a faz relembrar do laço que rompeu com sua filha. A ideia central da obra vai se esclarecendo, pouco a pouco, nesse jogo de cenas e de interpretações que Coutinho faz, ao darmos de conta que a narração de um acontecimento, de uma história, de fatos reais está interligada com a ficção, e que esta, por mais que use da imaginação, do surreal, da criatividade, possui sua relação com a realidade.
Fora essa dicotomia de realidade e ficção, Jogo de Cena é um longa-metragem lindo e emocionante de se ver, carregado de traços humanos, seja por parte das atrizes ou das mulheres que estão ali narrando histórias de suas vidas. O cenário escolhido, um palco de teatro, não poderia ser mais certeiro, já que estamos tratando de um lugar que, há milhares de anos, encena e reproduz inúmeras histórias da vida real e da imaginação humana.
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