UMA GRATA SURPRESA DENTRO DE UM UNIVERSO MANJADO E CANSATIVO
Como todo chato de galochas de carteirinha, nunca fui nem um pouco fã de séries juvenis e afins. Até curti bastante – bastante mesmo – Piratas do Caribe, mas é só pronunciar a palavra Crepúsculo ou Harry Potter, que já dou a conversa por encerrada. Embora eu compreenda que as aventuras do bruxinho nerd são mais voltadas para o público infantil, a briguinha boba entre os sem camisa e os de purpurina me irritam profundamente. E foi esse pré-conceito que afastou-me dessa nova onda que se tornou Jogos Vorazes (The Hunger Games, 2012). Pois bem, três anos depois do lançamento e após ler algumas matérias e textos, tive a oportunidade de assistir o filme e o fiz com a intenção de fundamentar minhas críticas contra ele (afinal, criticar sem ter assistido estava cada vez mais difícil!). Agora, depois de assistir do início ao fim, totalmente pré-disposto a torrar o filme, encho a boca pra dizer que o filme me surpreendeu positivamente. E mais: arrisco-me a dizer que Jogos Vorazes é até um bom filme.
A primeira coisa que me chamou a atenção de maneira positiva no filme de Gary Gross foi o tom melancólico e por vezes pesado que o difere da maioria dos filmes do gênero. Exceto pela passagem pela Capital (que se justifica dentro do contexto), não vemos aquele carnaval de cores ao qual já estamos acostumados em filmes voltados para esse público. Não. Em Jogos Vorazes, tudo é cinza, escuro, nublado. Os distritos, tão oprimidos pela rica e luxuosa Capital, são sujos, empobrecidos, chuvosos. Seus habitantes são batalhadores que vivem no limite da miséria, apenas esperando o tenso dia da Coleta. Essa Coleta marca o início das “festividades” conhecidas como Jogos Vorazes, onde um casal de jovens de cada um dos doze distritos, entre 12 e 18 anos, são escolhidos para lutarem até a morte em uma arena (na verdade, uma floresta), de onde apenas UM pode retornar com vida. Não há regras neste desafio, pois elas são alteradas de acordo com a conveniência para o show, já que estes jogos são transmitidos 24h por dia, como num Big Brother sangrento apresentado por uma espécie de João Kléber misturado com David Brasil. Este acontecimento celebra a vitória da Capital no Levante dos distritos contra a mesma, anos atrás, e serve para lembrar aos distritos da “vergonha” de sua rebeldia.
Estes conceitos são muito interessantes e bem trabalhados pelo roteiro do próprio Gary Gross, em conujnto com Billy Ray e Suzanne Collins, mostrando como a violência e a desgraça alheia são tratadas como um espetáculo pela grande mídia. Ninguém ali na tão desenvolvida Capital parece importar-se com o fato de serem apenas crianças que estão morrendo naquela barbárie. Muito pelo contrário, as mortes são anunciadas ao final de cada dia, com tiros de canhão ao som de uma emocionante música, enquanto seus rostos são projetados no céu artificial. Existem até mesmo patrocinadores que enviam utensílios para seus favoritos!
A protagonista Katnis Everdeen (Jennifer Lawrence, muito bem no papel) vem do distrito mais pobre e acabou sendo voluntária para salvar a irmã caçula Primrose (WIllow Shields) que havia sido sorteada. Tímida, séria, madura e de personalidade forte, Kat acumula as responsabilidades de irmã e exemplo, mãe – já que a sua parece sucumbir à difícil situação da família – e de esperança de vitória para o povo de seu distrito, dada sua extrema habilidade de caça com arco e flecha. Seu companheiro na competição, Peeta Mellark (Josh Hutcherson) é seu extremo oposto. Ciente de suas possibilidades quase nulas de sobrevivência, Peeta aposta todas as fichas em seu absurdo carisma e em sua língua afiada e habilidade ímpar em trazer o publico para si. Compreendendo como poucos o funcionamento deste tipo de evento, Peeta consegue atrair as atenções para Katnis e ele ao fingir um romance entre os dois, mesmo com a relutância da menina. Esse comportamento de Peeta reflete muito bem o que acontece nestes reality shows (nunca entendi esse termo, mas isso é assunto pra outra hora), onde a primeira coisa que os participantes procuram fazer para caírem na graças dos telespectadores e chegarem o mais longe possível é formar um casal, pois sabem que o grande – e letárgico – público quer ver isso (o porque, eu não sei). O apresentador do “show” Jogos Vorazes, Caesar Flickerman (Stanley Tucci) é uma excepcional caricatura dos comandantes deste tipo de “entretenimento”. O sorriso sistemático no rosto, a simpatia indiferente e a habilidade singular de manipular a informação para transformá-la em audiência, unidas a maquiagem gritante e ao figurino trabalhado caracterizam perfeitamente esta persona cada vez mais presente nas telinhas mundo a fora.
O elenco é espantosamente bom, contando ainda com Toby Jones, Elizabeth Banks, Wes Bentley (esse é muito ruim!) e até o músico Lenny Kravitz. Mas sem dúvidas, os dois coadjuvantes que mais chamam a atenção são Donald Sutherland e Woody Harrelson. Sutherland dá certa credibilidade a Snow, presidente da Capital. Snow poderia facilmente cair no caricato (e por vezes chega muito perto, eu diria até no limite), mas a competência do ator traz a dignidade necessária para salvar o personagem. Harrelson, a quem sempre admirei como ator, vive Haymitch Abernathy, vencedor de uma edição passada e treinador de Katnis e Peeta. Haymitch é um personagem bastante interessante, principalmente se analisarmos os visíveis reflexos de sua experiência traumática nos Jogos. Desesperançoso e ranzinza, Mitch parece tentar afogar suas memórias em doses letais de álcool. Porém, sua extrema sabedoria e sua vasta experiência serão fundamentais para o futuro dos dois garotos.
Embora possua uma temática interessante, Jogos Vorazes falha feio no papel de entretenimento puro, pois tecnicamente deixa bastante a desejar, principalmente na cena final, à noite na floresta, onde é quase impossível decifrar o que está acontecendo e que raios são aqueles cães do capeta que perseguem Kat e Peeta. É quase como se quisessem esconder algo que ficou muito mal feito. Assim como a cena da entrada nas carruagens, na apresentação dos Tributos (como são conhecidos os jovens que participam dos Jogos), onde o contraste entre os atores e o cenário é gritante e os efeitos são os mais artificiais possíveis. Para piorar, Jogos Vorazes peca ao não apresentar duas figuras essenciais para este tipo de filme: vilão e clímax. Partindo do princípio de que o Presidente Snow é o grande vilão da série, Katnis não encontra adversário a altura no campo de batalha. Muito provavelmente por essa falta de um antagonista, Jogos Vorazes não nos apresenta climax. Pelo menos não um satisfatório (aquela tenebrosa perseguição à noite citada acima não pode ser considerada como tal).
Mas com um roteiro que não cede ao óbvio e fácil caminho do romance entre os protagonistas e repleto de conceitos interessantes sobre a banalização da violência, o recrutamento militar obrigatório, regime ditatorial, imprensa marrom e sensacionalista e àquilo que é tido como entretenimento na TV de hoje, além de um ritmo muito bom, Jogos Vorazes se salva como uma das poucas coisas boas advindas dessa nova onda de adaptar tudo o que faz sucesso no mundinho cada vez mais pueril dos jovens de mentes cansadas e preguiçosas. Surpreendeu-me. Agradou-me. Valeu, Mr. Lubschinski.
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