Uma obra maravilhosa, do grande diretor chinês Ymou Zhang, que também fez “O clã das adagas voadoras” e o belíssimo “O caminho para casa”.
Eu particularmente sou apaixonada pela cultura oriental, e com o cinema não é diferente. Que sensibilidade há nas mãos deste diretor para o cinema, posteriormente quero escrever sobre “O caminho para casa” que considero sua obra prima. Mas “Lanternas vermelhas” está na lista dos meus melhores filmes também.
A obra é riquíssima de metáforas e simbologias, um verdadeiro show de cultura chinesa e de algumas tradições mais antigas.
As estações do ano exercem um poder mítico sobre a trama, não deve ser ignorada em nenhum aspecto. As mulheres ganham destaque, o diretor se volta para a vida de algumas delas que viveram numa época em que tinham que se submeter a um casamento dividido com outras mulheres (tantas quanto fossem necessárias) e tradições de famílias nobres seguidas à risca, ao nível de leis sagradas, que se porventura fossem desobedecidas, castigo até mesmo de morte deveria ser aplicado.
A protagonista da trama é Songlian (Li Gong) uma jovem universitária de família humilde, que é obrigada, depois que seu pai morre, a deixar sua casa e seus estudos para se casar com um homem que nem conhecia. Songlian é então enviada para a casa de Chen, um senhor de família nobre, muito rico na China. O drama era que Chen já tinha três esposas, cada uma conhecida como “primeira esposa”... segunda... terceira.... e Songlian agora se tornara a “quarta esposa”. A partir de então, essas mulheres começam uma competição repleta de intrigas para disputar certos privilégios de ser a “esposa escolhida para a noite”.
O palacio era enorme, lembrando bastante as construções feudais. Porém nesse palácio, as casas eram divididas por esposas, cada esposa tinha sua casa, cada uma morando com seus respectivos filhos e servos. E todas as vezes que o marido [ou senhor] desejava passar a noite com uma delas, era anunciado aos servos e estes se dirigiam até a casa da esposa escolhida, e penduravam-se as famosas lanternas vermelhas, decorando a fachada da casa. E nesse processo ainda incluíam algumas regalias, como massagens, especiarias e comida requintada [tudo o que elas não tinham no dia a dia rotineiro].
Portanto temos, quatro esposas de quatro diferentes gerações, e a trama se divide em quatro períodos, que são as quatro estações. Vamos às apresentações. A 1ª esposa é Yuru, mãe do primeiro filho do senhor, uma senhora, que já há muito era rejeitada pelo senhor devido sua idade avançada. Depois, temos Zhuoyun (2ª esposa), aparentemente de meia idade, deu apenas uma filha para o senhor, mas tem esperança de poder dar um filho homem ainda. Finalmente, temos a caprichosa e bela Meishan, uma ex-cantora de ópera, mãe de um garoto. E Songlian, que recebe como serva, a jovemYan’er.
Verão:
Com a chegada de Songlian, bem mais jovem e mais bonita que as outras esposas, ela se torna a favorita naquela noite, principalmente pelo fato de ser a noite de núpcias com Chen. Os primeiros indícios de intrigas começam naquela mesma noite, pois a 3ª esposa, Meishan, que até então era a favorita do senhor, enciumada com a chegada da jovem Songlian, inventa uma doença bem na primeira noite da novata. O senhor infelizmente deixa Songlian e corre ao socorro de Meishan.
Até aqui, por se tratar do verão ainda, as complicações são pequenas e as intrigas só estão começando, há uma “falsa” harmonia entre as irmãs [esposas se tratavam por irmãs]. Porém, a rivalidade da 3ª com a 4ª esposa começava a se agravar, e Songlian descobre alguns segredos obscuros e perigosos dentro do palácio.
Outuno:
Começam as primeiras chuvas, e é claro, os conflitos criam forma. Songlian começa a sentir na pele a terrível competição que existia entre as esposas na disputa pela atenção do marido, principalmente por ela ser a preferida de seu senhor agora. A 2ª esposa lança feitiços para Songlian, Yan’er, serva de Songlian ambiciona o posto da ama, invejando um lugar ao lado do senhor também, se unindo às demais irmãs preparando armadilhas para Songlian. Mulheres não podiam tocar instrumento de espécie alguma, e Songlian tinha uma flauta, que após ser descoberta por Yan’er é queimada. Entretanto, Songlian descobre que Meishan tinha um caso com o Dr. Gao, medico da família, e como ela estava sempre inventando doenças, aproveitava para desfrutar de um amor totalmente proibido. Yan’er escondia as lanternas velhas e quebradas em seu quarto, acendendo-as todos os dias para ela mesma.Convivendo com tantas mentiras e armações, Songlian começa então a usar sua cabeça e inventa estar grávida, tudo em nome do jogo de competição. Com isso, as lanternas eram acesas dia e noite na sua casa, uma festa.
Inverno:
A temida estação chega. A 2ª esposa com ajuda de Yan’er descobre a falsidade de Songlian, que na verdade não estava grávida. Furioso com isso, Chen manda cobrir as lanternas da casa de Songlian, e quando isso acontecia, significava que aquelas lanternas não seriam reacendidas tão cedo. Por sua vez, irritada com as injustiças cometidas e tantas mentiras obscuras, Songlian conta também o segredo de Yan’er sobre as lanternas escondidas, que conforme a tradição, deveria agora ficar ajoelhada diante das lanternas, enquanto estas eram queimadas, isso tudo no alento, no frio rigoroso da estação. Yan’er só poderia se levantar dali se pedisse perdão. Porém ela não admite o erro e por ficar tanto tempo exposta ao frio e à neve, fica muito doente e é levada para o hospital, onde morre posteriormente. O acontecimento marca a família por vários dias, trazendo muito remorso para Songlian, por ter entregado Yan’er, causando sua morte. Mas a maior das tragédias ainda está por vir. O primogênito de Chen, Feipu completaria 20 anos, na festa ela fica muito bêbada e acaba por contar o terrível segredo de Meishan. Mais uma vez, conforme a tradição, Meishan deveria ser morta, num quartinho obscuro e secreto que havia no palácio, onde ela era jogada após ser enforcada. O remorso bate novamente em Songlian, que já era culpada pela segunda morte naquela família.
“quanta neve, este deve ser um ano ruim”, foi a frase pronunciada pela esposa mais velha. Irônico não?
Com a morte de Meishan, Songlian acende as lanternas vermelhas da casa da falecida, fazendo todos acreditar ser seu fantasma retornando.
A primavera chega, e com ela, uma 5 ª esposa, Songlian enlouquece definitivamente.A câmera fecha e vai se distanciando aos poucos, filmando por cima da casa de Songlian, apenas as lanternas iluminando, e a jovem vagando feito um fantasma também, vestida de estudante. Um dos finais mais sublimes que já vi. Perdoem-me caros leitores, não me agrada ter que contar um final de filme, mas para que fosse feita minha análise, necessário é destacar os fatos do desfecho.
O filme é trágico, repleto de tradições rigorosas de uma China comunista, as mulheres mais eram concubinas do que propriamente esposas, pois estavam à mercê de ordens, sempre submissas às tradições e regras impostas pelo senhor Chen. Mas o período político da época é deixado de lado, e enfoca-se as mulheres, as estações, a vida e a maneira como cada uma delas escolhia viver, seus desejos e sonhos, desejo de ser amada e desejada pelo marido, sonho de ser mãe, ou de simplesmente fazer uma faculdade, ter um emprego e uma vida livre de tradições e privações.Tanto é o enfoque nas mulheres, que os homens quase não aparecem no filme, e quando aparece, por exemplo, Chen, é filmado de longe, ou de costas, por trás de véus e cortinas, não vemos rostos masculinos, há um distanciamento enorme, distanciamento este, que pode ser devido a preferência do diretor em dar enfoque às mulheres, ou mesmo o distanciamento que havia na época entre homens e mulheres.
Podemos ainda comparar as quatro esposas com as quatro estações, sendo Yuru, primeira esposa, o inverno, fria e rejeitada, não produzia mais nada. Zhuoyun, o outono, desejando brotar novamente, lutando para não perecer. Meishan, bela e desejada como a primavera, e Songlian, quente e eu diria até devastadora como o verão.
Songlian era a única mulher que tinha estudos, ou tinha qualquer desejo de não se submeter a nada, ela poderia ter conquistado outras coisas se não fossem as circunstancias da vida. Ela era intransigente, e representa a vontade própria da mulher, que na época era tida como um mero objeto sexual que poderia pagar com a própria vida caso desobedecesse às regras impostas pela sociedade e pelas tradições.
O vermelho é a cor primordial do filme que enche os olhos, representa o amor, a paixão, a vida [sangue], o desejo, o fogo, arrebatamento e também a morte, tudo o que aquelas mulheres mais buscavam.
Penso que o desfecho se assemelha muito com o recomeço, pois a primavera entrara novamente, e como Meishan pode ser considerada como a primavera, e ela morre no inverno, fica a incógnita para pensarmos, pois Songlian acendia as lanternas da casa da esposa morta, sugerindo uma suposta primavera ressurgindo, mesmo tendo chegado uma outra esposa, eu prefiro pensar na primavera como Meishan, que jamais morrerá nas lembranças daquele palácio, em especial na memória de Songlian.
Destaque para a fotografia, direção de arte, figurino, roteiro, tudo, o filme é tão belo quanto genial, trilha sonora de uma sensibilidade extraordinária também, que enriquece muito a obra. Totalmente recomendável e imperdível.
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