A tela foi preenchida por um vermelho primário que servia de fundo para as grandes letras brancas que diziam Produced and Directed by Stanley Kubrick. Ouviu-se a voz de Gene Kelly entoando os primeiros versos da canção Singin' in the Rain, servindo um pouco para me anestesiar de tudo que acabara de assistir. Laranja Mecânica havia terminado. Eu abri um sorriso. Sentia-me muito bem e feliz, o que talvez seja um pouco estranho. Afinal, passei um pouco mais de duas horas assistindo a covardes atos violentos, um governo egoísta e manipulador, um método de reinserção social para [ex-]criminosos unicamente desumano [unicamente?], um sistema familiar falido, um quadro cruel do futuro que nunca me pareceu tão atual e fui bombardeado por questões e sensações que questionam minha moral.
Alex é mau por natureza – e por opção. Ele tem acesso à escola, pais que, pelo menos inicialmente, se mostram preocupados com suas atitudes e não é desprovido de cultura, mas gosta de sair pelas ruas sujas de um futuro caótico para roubar, espancar a quem der na telha, invadir residências e violentar seus moradores, estuprar mulheres e lutar contra gangues rivais. Alex personificava o estado vil daquele tempo. Mas o cerne é: nosso humilde narrador fazia tudo isso por puro prazer e satisfação pessoal - o que, tenho que confessar, deixa-o extremamente fascinante.
Ele violenta um casal em seu lar enquanto canta alegremente Singin’ in the Rain e eu me pego rindo. Eu adoro quando ele invade a casa uma mulher e a ataca com uma escultura em forma de pênis. Acho justo quando ele bate em seus drugues e faz um corte na mão de um deles apenas para mostrar liderança. Não me importo quando ele chuta deliberadamente um mendigo deitado na rua, bêbado, sem nada ter feito. Kubrick transformou Alex num paradoxo, um jovem sem freios para o mal mas que me instiga desde o primeiro take. Como eu poderia me divertir com uma cena contendo a violência gratuita que me amedronta cotidianamente? Por que eu compraria os desejos de um criminoso repulsivo que ri naturalmente enquanto agride suas vítimas? Acredito que não deveria achar graça, mas Laranja Mecânica me deturpa.
O segundo ato se inicia com a prisão de Alex, dando início à principal discussão da obra. A superlotação nas cadeias e suas deficiências [algo que visualmente não é perceptível, sinto dizer, e caso essas informações não fossem ditas pelos personagens, eu teria tido uma boa impressão do sistema carcerário] e nosso narrador já está lá há dois anos. Ao descobrir sobre uma nova técnica ainda em fase de experimentação chamada Ludovico, a qual o governo criara para acabar com criminalidade - e ganhar a empatia do povo para a próxima eleição -, Alex se submete ao tratamento, já que assim conseguiria a esperada “liberdade”.
E liberdade é exatamente o que não consegue ao fim do tratamento. O governo transformou Alex numa laranja mecânica, com inclinação total para o bem, chegando a nem ser capaz de se defender – algo que no estado em que o mundo se encontrava, era primordial. Mas mais do que primordial, é o direito que temos como humanos, direito de escolha, seja lá a que tendência for. Ele não poderia mais sair à noite e fazer o que tanto gostava. Nem ao menos se divertir à maneira que preferia. Ele virou um robô e a partir deste instante é colocado na posição de vítima do Estado. Logo, não somos a favor disso e lutaremos pelo seu direito de fazer o mal, right-right?
É aí que me pergunto até que ponto essa é uma política totalmente desumana. Fiquei imaginando os criminosos de hoje sendo submetidos à técnica Ludovico. E digo sem remorso: eu adoraria o resultado. Desta forma, vale mais lutar pela moral de qualquer ser humano ou usufruir de um tratamento pouco [ou nada] ético para conquistar uma sociedade segura?
Já para o governo – e para quem quer alcançá-lo -, o que realmente importa é seus interessantes. Assim, o terceiro ato é tão magistral quanto o primeiro e chega a ser assustador por sua verossimilhança. Após sobreviver a sua tentativa de suicídio, Alex agora está no hospital, onde recebe a visita do Ministro do Interior, o mesmo que o atestou apto para o tratamento Ludovico. Se antes nosso narrador era tratado como cobaia e não havia recebido a mínima preocupação do Estado, agora o Ministro o chama de “amigo” e dá comida em sua boca [isso não está no livro, vale dizer], atitude a qual representa a total disponibilidade do governo em servi-lo e agradá-lo, para assim recuperar sua credibilidade com a sociedade após todos os inoportunos ocorridos a Alex. Ele entende a mensagem e quando questiona se a população compactuaria com a mudança ideológica do governo, o Ministro não hesita em dizer: “A opinião pública está sempre mudando”. E o filme é de 1971.
Caso alguém pergunte sobre o desfecho, a verdade é que: "Termina com um final feliz. Ele está curado e volta a ser mau. Ao se imaginar estuprando uma mulher, a alta sociedade aplaude. Era essa a sua vontade, afinal".
Apesar das complexas questões que Laranja Mecânica lança ao espectador e por estas estarem inseridas num roteiro irretocável que também funciona por sua narração bem construída e fluida, com reviravoltas e elementos que me incitam durante todos os 136 minutos de filme – que no fim das contas acabam parecendo apenas 30 -, tudo poderia dar errado se caíssem em outras mãos. Quiçá nem seria das piores coisas, mas, com todo certeza, estaria bem aquém do material concebido por Stanley Kubrick.
Depois da leitura do livro, é de se contemplar ainda mais o apuro técnico e o estilo inconfundível presente no filme. O texto de Burgess é econômico ao descrever a ambientação e as características dos personagens - na maior parte, ele é desprovido de qualquer detalhamento dos espaços onde se desenvolvem a história de Alex. Portanto, meus irmãos [preciso usar isso de novo], quando Laranja Mecânica se inicia ao som do soberbo tema criado por Wendy Carlos, toda a magnitude visual que seus olhos apreciam é produto da mente de Kubrick. É como um prelúdio, anunciando tudo o que está por vir.
Do olhar de Alex [e não ousaria limitá-lo com adjetivos], a câmera nos revela em uma única tomada, vagarosamente, numa elegância estética da linguagem cinematográfica do diretor, todo o ambiente com uma composição simétrica dos objetos e atores - estáticos - em cena, como nos grandes quadros renascentistas, mas com uma aparência inquietante e perturbada, a qual, ao percebê-la, não consigo evitar um sorriso de orelha a orelha. Não consigo exprimir com exatidão o que sinto, contudo, é como se minha paixão pelo cinema tivesse uma ligeira justificativa.
Na cena seguinte, o diretor utiliza a câmera da mesma forma – de um pequeno quadro, aos poucos compõe um grande plano -, causando um visual magnífico com as sombras dos atores imergindo em cena. Reparem que a fonte da forte luz utilizada é revelada sem o menor problema: há um poste de luz no meio da rua e ele não está ali para cumprir uma função cenográfica, mas sim fotográfica. Uma iluminação semelhante é eficiente também na seqüência seguinte, no balcão abandonado, na qual a luz é assumida e modificada sem pudores por Kubrick, a fim de se obter o resultado visual que desejava. Original e o melhor possível, eu diria.
A elegância da câmera de Stanley Kubrick é a mesma de suas obras anteriores. Planos-seqüência, zoom preciso, enquadramentos incomuns e uma câmera que muito expressa a situação atual dos personagens. Nota-se, por exemplo, como a câmera permanece imóvel durante a primeira visita de Alex e seus drugues à casa do escritor [toda a ação é manifestada pelo atores], contrapondo-se com a agitada tomada que acompanha a segunda visita do nosso narrador ao local, quando ele se encontra roto, abandonado e, principalmente, “curado”. A extensa tomada de câmera na mão que nos leva ao meio do mato onde Alex será agredido contrapõe-se a todas as outras, sempre em linha reta e lentas, usadas na primeira parte do filme. Ou seja, o diretor emprega a câmera na mão somente após o tratamento de Alex, nos momentos em que é posto na posição de vítima, sendo uma tentativa de aproximar o espectador do novo estado nefasto que o personagem se encontra e, sobretudo, mudar a estética predominante do primeiro ato.
Há um relacionamento perfeito em Laranja Mecânica entre música e imagem, a sintonia genuína do cinema. Ao som de música clássica, em especial as de Ludwig Van [como Alex preferia dizer], Stanley extrai um lirismo de cenas de sexo e ultraviolência, por mais improvável que isso pareça. O ménage à trois acelerado se harmoniza brilhantemente ao som da conhecida trilha de fundo, uma cena de sexo a uma maneira nunca vista até então, ressaltando a originalidade de Kubrick em transformar uma passagem simples do roteiro em imagens incomuns e antológicas. Uma seqüência em câmera lenta contendo a agressão de Alex a seus drugues, a pancadaria no balcão abandonado e qualquer outra de mesmo teor se resultam no sublime com a trilha que as preenche.
Ainda faltava comentar sobre o figurino – que já virou um ícone do filme junto com a maquiagem de Alex -, a atuação do Malcolm McDowell – com suas caras, expressões, voz, trejeitos construiu um personagem repugnante e apaixonante, extremamente dúbio e um dos meus favoritos do cinema, sua interpretação é metade do filme – e do Patrick Magee, o escritor – geralmente não muito comentado em textos sobre a obra, mas acho sua interpretação bastante visceral –, e algumas outras cenas, mas chega. Abstenho-me em continuar escrevendo o inequívoco.
Que, ao menos, tenha ficado claro o motivo de achar Laranja Mecânica o melhor filme de Stanley Kubrick, o melhor da década de 70 e um dos melhores de todos os tempos. Right-right-right?
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