Laranja Mecânica, filme de 1971 do renomado cineasta Stanley Kubrick, apresenta, fundamentalmente, um enfoque autoritário de uma sociedade futurista inglesa com leves pitadas de distopia. Kubrick, de forma visionária e com um completo domínio das técnicas de direção, faz um verdadeiro estudo da liberdade dos indivíduos que integram o sistema social e, assim, consequentemente, analisa também a temida intervenção estatal na vida privada dos cidadãos. Deste modo, a película representa uma forte crítica ao intervencionismo estatal na esfera de decisão dos particulares, que perigosamente tende a assumir características totalitárias.
O brilhante filme, que tornou-se um ícone máximo da Sétima Arte, nos apresenta as memórias de seu protagonista, Alex DeLarge, aficionado por Beethoven e ultraviolência, e sua gangue em uma sociedade futurista inglesa. Ele e seus druguis (o filme utiliza uma linguagem peculiar denominada nadsat para provocar um forte impacto e estranhamento nas pessoas) sentem um estranho prazer em causar dor e sofrimento em seus concidadãos. Entretanto, Alex é capturado e preso pela polícia e sentenciado à quatorze anos de reclusão por homicídio. Para reduzir sua pena, Alex aceita submeter-se a um procedimento inovador que curava as pessoas e condicionava-as ao bem, denominado ‘’Ludovico’’. Tal tratamento consistia numa estratégia estatal de terapia experimental para reduzir a criminalidade e a delinquência social. O tratamento o condiciona e o torna incapaz de realizar qualquer ato de violência (até mesmo em própria defesa) e, secundariamente, impossibilita até mesmo de escutar sua música favorita, a Nona Sinfonia de Beethoven, pois sempre que é tentado ao mal, seu corpo o impede através de enjoos. Mesmo que ele deseje realizar o mal e praticar a ultraviolência, os enjoos aparecem, reprimindo o seu desejo mais intrínseco. Cumpre destacar que Alex não deixou de ser mal (sua essência permanece), apenas foi praticamente obrigado devido aos obstáculos físicos. Denota-se claramente, portanto, uma forte invasão do Estado na esfera decisória do individuo, privando-o de realizar suas próprias escolhas, mesmo que elas sejam más. Em dado momento do filme, certo personagem ressalta: ‘’Quando um homem deixa de poder escolher, deixa de ser homem’’. O final do filme, que evidencia a ressureição e a cura, e, de certa forma, é ‘’feliz’’, é inesquecível e emblemático.
Adaptado do romance homônimo de Anthony Burgess de 1962, e considerado uma das raras exceções em que o filme supera o livro, Laranja Mecânica é uma verdadeira obra-de-arte de Stanley Kubrick. O realizador adaptou brilhantemente o roteiro e alterou significativamente o final do filme, mas, por outro lado, deixando intacta a mensagem transmitida originalmente pelo livro. Nas palavras de Kubrick: ‘’ É necessário que o homem possa escolher entre o bem e o mal, ainda que escolha o mal. Privá-lo desta escolha é transformá-lo em algo que é menos que humano – uma laranja mecânica.’’ Portanto, o título ‘’Laranja Mecânica’’ – que advém de uma gíria inglesa -, representa o caráter desumano adquirido por Alex após ser submetido ao método Ludovico. No caso, a parte inicial do título, a ‘’laranja’’, representa a parte orgânica/biológica, enquanto a palavra ‘’mecânica’’ representa a automação, ou seja, algo mecanizado, programado, controlado, encaixando-se perfeitamente ao que Alex se tornou.
De forma genial, Kubrick, dessarte, protesta que a violência é intrínseca a todo ser humano. Todas as pessoas tem o direito ao livre arbítrio, de escolherem entre o certo e o errado e viverem da maneira que bem entenderem, sendo, no entanto, reprimidas e penalizadas por tais escolhas. Se o Estado tomar o lugar do indivíduo e realizar o processo decisório em nome dele, estaremos fadados à uma sociedade distópica, opressiva e, acima de tudo, desumana. No instante em que o anti-herói é condicionado para praticar apenas o bem (ele continua sendo mau, apenas não pode externalizar isto), de forma irônica e sarcástica, ele deixa de ser aceito pela sociedade. Engraçado, não?
Kubrick, apesar de todas as dificuldades que um tema desta densidade exige, encontra espaço para analisar um dos maiores direitos garantidos pelo Estado de Direito: a liberdade. Todo indivíduo que integra uma sociedade democrática, possui tal direito, independentemente de ser bom ou mau, certo ou errado, justo ou criminoso. O diretor, deste modo, trás a tona importantes questionamentos: qual o limite em ceder nossa liberdade em prol do interesse social? Sem dúvidas, Kubrick faz uma ferrenha crítica ao burocrático sistema penal atual que preza apenas pelo interesse público (redução da criminalidade) e esquece dos direitos humanos do condenado.
O filme contém cenas fortes e impactantes de violência de Alex e seus amigos espancando velhos, estuprando mulheres e algumas coisas mais, considerado, portanto, um dos filmes mais polêmicos e violentos da história do cinema. Aliás, devido à todo este quadro, o filme foi muito criticado no Reino Unido e, à pedido de Kubrick, somente passou a ser exibido naquele país após a sua morte, em 2000.
Os aspectos técnicos do filme são perfeitos. Talvez Laranja Mecânica seja o filme mais bem dirigido de todos os tempos. Se fosse possível realizar um único Oscar de toda a história do cinema, o prêmio de melhor diretor, possivelmente e merecidamente, iria ser entregue à Stanley Kubrick por seu magistral trabalho concebido nesta película, apesar de não ter ganhando (injustamente) o Oscar de melhor direção no ano em que concorreu (1972). Perfeccionista ao extremo, o realizador cuida de cada mínimo detalhe para atingir o sublime. A trilha sonora, as sombras, as técnicas de filmagens, o cenário futurista, as atuações, tudo é perfeito neste grande culto à Sétima Arte. A atuação de Malcolm McDowell impressiona de tão impecável. Não há nada o que melhorar em sua performance como Alex. É simplesmente sublime. Cada olhar, cada gesto, cada diálogo, enfim, tudo aqui é fruto de um trabalho de um gênio. Sua interpretação como Alex eternizou-se para sempre e criou um verdadeiro ícone para muitas gerações. Aliás, um fato curioso que comprova todo o importante significado de McDowell para o filme é que Kubrick certa vez declarou que, se não pudesse contar com o ator, provavelmente não teria realizado o filme.
Malcolm McDowell salientou em determina ocasião que a cena em que espanca e estupra a mulher do escritor Alexander, cantando Singin’ in the Rain (cena clássica), surgiu de um improviso, não previsto originalmente no roteiro. Ao saber disto, Kubrick voltou na mesma hora para sua casa e comprou os direitos da canção. Gene Kelly, como se tem por óbvio, odiou sua versão. E não é para menos: a música que era conhecida por um ambiente alegre e leve, em Laranja Mecânica teve toda a sua áurea de felicidade desmanchada, adquirindo um contorno tenebroso e violento.
Com um orçamento inicial de apenas dois milhões de dólares, Stanley Kubrick, mais uma vez, prova a tese de que o sucesso e a qualidade de um filme não sustenta-se apenas em orçamentos milionários e, sim, na capacidade de seus realizadores. Com um lucro beirando a casa dos quarenta milhões de dólares, o filme, apesar de toda o forte impacto causado, consistiu em um sucesso absoluto em seu lançamento e consolidou o nome do diretor frente aos grandes estúdios. Stanley Kubrick adquiriu, desta maneira, um estado que possibilitava desenvolver livremente suas ideias sem submeter-se à vontade das produtoras. Kubrick tinha (efetivamente) controle absoluto sobre tudo o que realizava.
Luis Buñel, diretor de filmes como O Discreto Charme da Burguesia e O Anjo Exterminador, clássicos do cinema surrealista, certa vez vez salientou que ‘’Laranja Mecânica é atualmente o meu filme preferido. Eu estava inclinado a não gostar do filme, mas depois de o ver, percebi de que é o único filme que representa verdadeiramente o mundo moderno’’. Indiscutível.
Apesar de toda a polêmica que cerca o filme, Laranja Mecânica é um dos maiores (para muitos, o melhor) filmes já realizados na história do cinema. Um verdadeiro ícone que marcou para sempre muitas gerações. Com uma ferrenha crítica aos interesses políticos que sobressaem-se sobre a liberdade dos cidadãos e a influência que o meio provoca sobre os indivíduos, Kubrick concebeu um filme eterno e único. Um verdadeiro humor negro que ressalta que os homens maus tem o mesmo direito ao livre arbítrio que os homens bons. Ao final de tudo, o expectador que assiste o filme é levado a pensar qual ato retratado na película é mais violento e desumano: a ultraviolência praticada por Alex e seu bando ou a forma de controle estatal sobre os indivíduos e a falta de liberdade? Inquestionavelmente genial.
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