Nascido para Matar
Não vou lembrar exatamente o ano, ou a idade que eu tinha no dia (provavelmente 11 ou 12). Sempre gostei de ver filmes, desde que me entendo por gente, e, como alguém que levou anos para ter acesso a canais de TV por assinatura, a TV aberta sempre me serviu como refúgio. Lembro que na Globo, a expectativa de passar algo interessante era às segundas na Tela Quente e aos sábados no Supercine, e esporadicamente nas madrugadas dos dias úteis no Intercine ou aos domingos à tarde e beirando a meia noite. Já no SBT, eram quatro os dias: terça-feira (Cine Espetacular), quinta-feira (não vou me recordar o nome, e também as sessões de quinta não duraram, pelo que me lembro, muito tempo na programação), sexta-feira (Tela de Sucessos) e sábado (Cine Belas Artes).
Agora cabe aqui uma observação importante para o início da história: quando vemos filmes somente pelos canais abertos, só temos contato com as produções dubladas. E quando somos novos, até mesmo nos DVDs (hoje também BluRay, e em minha época, também VHS), sempre procuramos por filmes dublados também. Normal. O gosto por filme legendado, para quem floresce, vem com o tempo.
E depois de ver algumas produções americanas lendo a tradução e com o idioma natural, percebemos que alguns filmes contêm palavrões e linguagem obscena em geral. O choque é inevitável, principalmente quando você já viu aquele filme de maneira dublada. É então que você desvenda o segredo: o processo de dublagem modifica e filtra muita coisa, salvo raríssimas exceções.
Justamente por causa de uma dessas exceções que tudo começou para mim. Naquela semana, assistindo aos comerciais no canal do Sílvio Santos, a tão impressionante e impactante chamada do filme que passaria dali a um ou dois dias apareceu: Nascido para Matar. E daquele comercial levanto três itens incomuns: 1- uma figura autoritária berrando a poucos centímetros da cara do soldado: VOCÊ É UMA BICHONA? 2- uma cena de tiro quase em câmera lenta fazendo jorrar uma quantidade considerável de sangue. 3- um nome destacado: Stanley Kubrick. Naquela época, eu só tinha noção de poucos nomes de atores e nenhuma de diretores, com exceção de Steven Spielberg, por questão de apelo popular. Muito menos havia visto alguma vez um nome de diretor em destaque.
Naturalmente, chegou o dia e horário e pus-me a assistir. Quando me dei conta, estava chorando de gargalhar dos xingamentos e ofensas ditos por aquele tal de Sargento Hartman, e imaginando: “minha nossa, eles estão dizendo palavrões mesmo”. E terminei hipnotizado aquele filme, não gostando tanto da segunda metade quanto gostei da primeira (algo que melhoraria com futuras revisões, e que se ouve/lê de alguns até hoje).
De lá para cá, já devo ter visto o filme novamente cerca de três ou quatro vezes, e figura dentre meus preferidos.
Laranja Mecânica – Seleção da Holanda?
Ao contrário de ver filmes, ler jornais nunca foi de meu costume. Portanto, mais uma vez a data foge à lembrança, e mais desconhecido ainda é o motivo de eu ter estado com aquele jornal em mãos, ou a manchete que eu estava lendo. Pois bem, descendo os olhos pela manchete, que teve algo com relação a cinema, um dos parágrafos terminava com uma comparação: “como Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick”.
Como alguém que sempre gostou de futebol e cujos principais filmes conhecidos eram Titanic ou À Espera de um Milagre, mais uma vez trabalhando a mente para o que me convinha, cheguei a um de vários dos espantos equivocados que uma criança tem aos montes: “nossa, o cara daquele filme doido de guerra lá fez um documentário sobre a seleção holandesa de 74!”.
Foi numa primeira visita a uma locadora Blockbuster que vi que não era nada daquilo. Frequentar locadoras e ver todos os títulos da loja, lendo atrás e vendo a capa, mesmo sabendo que nada seria comprado ou alugado, era uma atividade que me agradava. Estava lá o tal do Laranja Mecânica, que era, pela sinopse, um líder de uma gangue que depois passa a sofrer com aqueles que antes eram suas vítimas. Nada a ver com futebol.
Mas meu segundo contato com um filme de Kubrick na verdade foi com outro: De Olhos Bem Fechados. E também começou com um jornal. Mas este jornal tem uma explicação: foi parte de um baú de mágicas do Mister M que ganhei lá pelos 6, 7 anos. E numa oportunidade que resolvi lê-lo, estava um anúncio com um pôster em preto e branco com o nome do filme, o rosto de um casal se beijando e somente três palavras, em caixa alta: Cruise. Kidman. Kubrick. Os dois atores tudo bem, mas olha de novo o nome daquele sujeito lá.
E foi numa nova chamada do SBT que vi imagens do filme. Basicamente percebia-se que havia um conteúdo com insinuações sexuais. A única coisa que me fez querer ver foi a possibilidade de ver a bonita Nicole Kidman com pouca ou nenhuma roupa. Coisas da puberdade. Acabou que, só depois de mais um ano, no mesmo canal, consegui, vi o que queria, e não terminei o filme porque estava achando tedioso. Outro que melhorou com uma revisão.
Aí vieram meus 15 anos de idade. Foi numa noite de sábado, após assistir a Gigolô Europeu por Acidente. Ao terminar o filme, passei pelos canais, como de costume, e caí no TCM. O que apareceu na tela foi um local muito parecido com um teatro, com vários rapazes e uma moça chorosa, com música clássica ao fundo. Foi deslumbrante. Não mudei mais de canal e fiquei embasbacado com a sucessão de imagens, sons e palavras que apareciam. Não passaram comerciais então não tive contato nenhum com o nome do filme, mas meu subconsciente, puxando daquela sinopse de capa de DVD há anos, disse-me: é o Laranja Mecânica. No final, após dormir e acordar no dia seguinte, concluí que se tratava do melhor filme que já havia visto.
Desde aquele dia, quis investigar mais a fundo a sétima arte. Conhecer cineastas, filmes mais clássicos e frequentar sites que falavam de cinema. Pode-se dizer que foi um divisor de águas nos meus hobbies. E Stanley Kubrick foi meu mentor, ainda mais depois de prosseguir com sua filmografia. 2001, Lolita, O Iluminado, Glória Feita de Sangue, etc. Filmes únicos, peculiares, frutos do trabalho de um profissional que não se contentava com pouco, que permanece até hoje como meu artista predileto.
Não dá para comentar um filme de Stanley Kubrick. Tudo que tinha para ser dito já foi, nada seria acrescentado. E ao mesmo tempo que dá para ficar horas tentando dissecar sua obra, faltam palavras.
E você? Tem algo para contar sobre seu amor por alguma obra ou realizador?
1) A minha história sobre como tornei-me cinéfilo está no meu comentário sobre Emigma do Outro Mundo, de John Carpenter.
2) Visitar todas as locadoras que eu conhecia pra ficar lendo sobre os filmes, como você citou, era uma das boas diversões e um dos meus passatemos prediletos da minha infância. Que pena as videolocadoras foram extinguindo-se aos poucos....
3) Concordo com você, Ítalo. Não há o que se falar sobre um filme de Kubrick que já não tenha sido dito, embora nunca seja o suficiente. Seus filmes despertavam rm nós tantas idéias, tantos sentimentos que parece impossível organizá-los em palavras. O texto mais difícil que eu já escrevi foi para 2001 - Uma Osisséia No Espaço, tamanha a genialidade da obra.
4) Parabéns pelo texto. Um relato - mais do que um comentário acerca do filme - muito gostoso de ler. Acredito que surtiu na maioria o mesmo efeito que em mim: identificação e nostalgia.
valeu pelo feedback, Cristian!