“Oh Alegria, sois Divina
Filha de Elísio
Tornais ébria a Poesia
Inspirais Dionísio
Nem costumes ou tradição
Vos reduzem o Encanto
Criais-nos um mundo irmão
Insuflais o nosso Canto”
Bonito, não? Esse é o principal trecho da Ode à Alegria, aquele famoso coral que aparece no quarto movimento da Nona Sinfonia de Beethoven. O texto na íntegra fala sobre coisas bonitinhas, como a união da humanidade, no momento em que todos os povos se reconhecem como irmãos. Uma verdadeira obra-prima das artes. E a sétima delas resolveu lhe empregar do jeito mais curioso possível. Como tema de uma das obras mais pessimistas sobre a violência: “Laranja Mecânica”, de Stanley Kubrick.
O filme, inspirado no romance de Anthony Burgess, se passa em uma espécie de realidade alternativa. Nessa sociedade, a violência enter os jovens se tornou difundida à quase todos. Eles atuam em pequenas gangues e saem por aí cometendo atrocidades. Em uma delas está o protagonista, Alex DeLarge (Malcolm McDowell). A cena de abertura representa bem como funcionam as coisas nesse mundo. O olhar de Alex, enquanto uma sinistra música feita em sintetizadores toca ao fundo, é cortado à uma cena em que um velho irlandês, que canta músicas folclóricas, está sendo atacado pela gangue. Aqui está demonstrada essa geração, que reage de maneira violenta aos velhos que, no momento em que contenplam isso, reclamam dizendo que o motivo dessa geração perdida é que, nas palavras do velho irlandês, “a lei e a ordem não existem mais”. A velha visão conservadora de que a disciplina mantém o equilíbrio social. Mas o filme puxa a sardinha para esse lado reacionário?
Depois de demonstrar esse choque entre gerações, o filme segue para a cena da briga entre as gangues em um cassino fechado. Drogas, estupro. Tudo de pior acontece nessa cena do cassino. Mas por que nesse lugar? Bem, aqui, o velho Stanley contradiz o que o irlandês bêbado disse na sequência anterior. O cassino, geralmente associado à corrupção e vício, demonstra que a geração anterior já estava doente. E que aqueles que estavam se degladiando ali eram apenas frutos disso tudo. Kubrick afasta qualquer moralismo conservador aqui. A diferença entre aqueles jovens e os demais é que eles apenas escancaram o seu lado podre. Eles se apegam à tudo que os antigos reprovavam (o fato de Alex possuir uma serpente, animal que geralmente causa repulsa, de estimação é uma analogia à esse comportamento rebelde. Isso de os velhos esconderem sua perversão vai ficar mais explícito em outra cena do filme, que será discutida mais adiante.
Muitos dos personagens estão ali representando elementos sociais. O mais óbvio é a família, a mamãe e o papai de Alex. Sim, eles não possuem nomes. São só mamãe e papai. E como são frustrados. Em um momento a mãe diz que tomou remédios para dormir. Esse filme, em 1972, adiantou a pandemia de pderessão e a mina de outro dos antidepressivos para a indústria farmacêutica. O fato de o filme somente lhes chamar por “mamãe” e “papai” mostra como os rótulos funcionam. Simplesmente carimbam isso na testa deles, juntamente com um bolo de obrigações. E qual a consequência disso? Pais displicentes, que criaram um filho que facilmente os manipula. E o que é pior. Como dentro de casa ninguém coloca o adorável Alex na linha, sobra para o Estado fazê-lo.
Eis que a lei aparece no filme, na figura do advogado de Alex. O rapaz já tinha se envolvido em encrencas antes, e, como seus pais não conseguiam lidar com ele, isso sobrava para o defensor da lei. Lei essa que acredita que a única forma de reparo na doença da criminalidade é com a punição, o castigo. A lei quer suprir a falta de afeto familiar com o suplício. E também acreditava piamente que ameaçar os delinquentes com isso iria solucionar o problema do crime. Mas, assim como o advogado não notou que havia uma dentadura na água em que bebia, a lei não sabe com o que realmente está lidando. Assim como dentro da gangue de Alex. Existe o chefe, que é o próprio Alex, uma analogia ao Estado punitivo, e os seus colegas (drugues, segundo a gíria do próprio universo do filme), que representam os demais setores da sociedade. Alex pune a indisciplina de um deles, machucando a sua mão. Mas ele mal sabe que a própria mão ferida é que vai contra-atacar, de maneira covarde.
Então chega a famosa sequência da mulher dos gatos. É possível tirar várias sacadas dessa cena. Primeiro é o fato do interior da casa ser toda cheia de desenhos obscenos, mas existe uma porta digna de um castelo medieval protegendo-a. A velha dos gatos é a hipocrisia da sociedade conservadora, que tem seus podres, tenta escondê-los, e se aborrece quando os jovens os tocam. Outra tirada é a falta de responsabilidade de Alex, ao não ter noção das consequências de seus atos. Sua reação ao ver o estrago ao enterrar um pênis gigante na velha demonstra bem isso. Mas as coisas acabam mal para o jovem DeLarge, que acaba sendo preso após a traição de seus amigos. Aqui acaba o primeiro arco do filme.
O segundo arco ocorre na prisão, lar dos infligidos pelo contrato social (“não leia, assine”, diz um guarda com trajes nazistas à Alex). O jovem deliquente passa dois anos vendo o Sol nascer quadrado. Durante esse intervalo de tempo, ele se torna um detento exemplar, chamando inclusive a atenção do padre do presídio. Entretanto, ele continuava doentio por dentro, vendo somente o lado mais violento e fanático das coisas. Um exemplo disso é o momento em que ele lê a Bíblia e se interessa pelas partes mais sanguinárias. O filme demonstra aqui que o problema não está dentro do criminoso. Nenhuma medida em cima dele irá resolver nada. Nem mesmo se livrando dele o problema seria resolvido, pois a sociedade é uma fábrica de delinquentes.
Então Alex é submetido à um tratamento que promete retirar o seu lado violento. Ele é drogado enquanto assisite à cenas de violência. Os médicos inclusive incluem música clássica, seu gênero preferido, visando tornar o experimento mais eficaz. E eles conseguem. Um novo Alex volta à sociedade, completamente incapaz de fazer mal à alguém.
Mas a sociedade não estava pronta para recebê-lo de volta. Sua família não confia mais nele, conseguindo inclusive in filho “substituto”. O irlandês que foi espancado por ele, mesmo vendo que ele não conseguiria esboçar nenhuma reação, o espancou. Então ele é novamente agredido pela polícia, que eram, ironicamente, seus antigos amigos bandidos. Olho por olho. E o sadismo social é posto em prática, com o nome de justiça.
Depois Alex é mais uma vez confrontado com a lei, mas dessa vez na figura do seu portador: o Estado. Após tentar suicídio, o ministro que propôs esse bizarro tratamento o visita no hospital. Eles fazem um acordo, e tudo acaba bem para todos. E assim o filme acaba, com o Ministro apertando a mão de um assassino estuprador, que nenhum tipo de punição ou tratamento conseguiu curar, tocando um trecho pra lá de irônico da Nona Sinfonia: “Abracem-se milhões! Enviem este beijo para todo o mundo!”. A ilusão de segurança é criada para uma sociedade doente, do Ministro ao mendigo irlandês bêbado. E o ciclo da violência recomeça.
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