Kubrick é um cara engraçado. Não é rara em seus filmes a sensação de contemplarmos quadros meticulosamente preparados, onde tudo está no seu devido lugar exercendo a devida função estética. Mais do que esteta, Kubrick é um classicista. Suas imagens remetem aos princípios renascentistas de composição pictórica - particularmente, a perspectiva albertiana de único ponto de fuga, valorizada pelos constantes zoom in e zoom out da câmera. Mas a evocação desse repertório canônico de arte é concomitante a uma forte iconoclastia: Kubrick utiliza os métodos de Alberti não para imagens de graça e virtuosidade, mas de pesadelo e perversão. Em O Iluminado o corredor do hotel é enquadrado em perspectiva albertiana para ser preenchido no mesmo instante com uma cascata de sangue.
Laranja Mecânica, um dos filmes mais polêmicos do diretor, recorre exaustivamente a essa reviravolta estética, quase em tom de paródia. Os quadros ao modo albertiano são ocupados por manequins nuas de vulvas abertas, murais pichados com falos e becos sujos em contraluz, e é extremamente irônico o plano em que o ponto de fuga da imagem são as pernas abertas da massagista no momento de ioga. Há um desencontro entre a concepção imagética e o conteúdo da forma: se a perspectiva busca um equilíbrio clássico relacionado à exatidão e virtude, os pilares da imagem são a pornografia, o imoral, os corpos grotescos e erotizados, pintados em cores chapadas e vibrantes. O futuro distópico de Laranja Mecânica não é classicista mas pop art, a julgar pela palheta e contrastes cromáticos ao estilo Andy Warhol, complementados por outras referências à arte moderna - as mobílias derivadas do estilo Bauhaus e as arquiteturas a lá Frank Lloyd Wright. Essa segunda referência também é carregada de iconoclasmo: as cores pop art são extremadas ao nível do kitsch, rendendo caracterizações caricatas como a mãe de perucas coloridas, e não há paródia maior à arte conceitual do que a estátua fálica de porcelana.
Mas a subversão ao cânone artístico não se trata de mero pastiche de um esteta. O enquadramento final da orgia de Alex re-regenerado, aplaudida pelos aristocratas, é bastante reveladora sobre a posição de Kubrick como cineasta e artista. Se a arte moderna e contemporânea propôs a contestação de um repertório canônico de representação, levando o tabu e a violência ao primeiro plano na desconstrução da forma, elas ainda foram ineficazes em desconstruir a aura desse objeto artístico. Fala-se e ao mesmo tempo não se fala da violência, pois o que impera é o fetiche sobre o feito estético: para o círculo intelectual o que a obra está realmente apresentando não interessa, já que o mais importante é o ato da pronunciação, o fato de se falar sobre o assunto e não a imagem produzida ou o discurso propriamente dito. Nesse sentido, mesmo a obra mais conservadora e pueril é legitimada pela intenção ideológica do artista e é contra essa masturbação que Kubrick se rebela ao transformar a caricatura da arte conceitual em uma arma de fato: a estátua fálica que nas mãos de Alex vira um instrumento de assassinato.
Laranja Mecânica escancara o potencial da imagem como dispositivo de violência. Ela não apenas ilustra a violência: ela incita à violência. Os teóricos do renascimento italiano e do neoclassicismo francês não se preocupavam à toa com o potencial moralizante ou corruptível dos quadros: as imagens dão corpo aos desejos e perversões do homem, mesmo no plano psicanalítico onde as pulsões do id são traduzidas pelas imagens do sonho. E quando bem executadas em termos de persuasão e retórica, elas não apenas satisfazem como alimentam o desejo. É simbólico que a regeneração de Alex utilize as imagens do cinema e um filme sobre o Terceiro Reich. Não seriam os regimes totalitários os melhores exemplos de um imaginário que desencadeou a ultraviolência? E não seria o cinema um indutor de comportamentos e percepções? Lembremos da cena final de O Acossado ou do protagonista obsessivo de Um Corpo que Cai: se o espectador do filme é ativo o suficiente para não se sujeitar ao filme, será que ele, por outro lado, está imune à influência da tela? O impacto do filme sobre o espectador é tão insignificante a ponto de o assalto de violências no Reino Unido ter sido responsabilidade somente das más interpretações à Laranja Mecânica e não do criador e sua obra? Claro que o intuito aqui não é a crucificação do cineasta ou a justificativa de uma censura. O ponto é que as imagens fílmicas, assim como a propaganda, possuem sim o poder da indução, não por uma ideologia bestializante da qual elas são escravas, mas por uma retórica propriamente imagética que deve ser reconhecida tanto quanto a retórica do discurso.
A maior violência de Laranja Mecânica não se dá nas cenas gráficas de estupro e agressão mas nos jogos de identificação e empatia com o espectador. O plano de abertura é o melhor exemplo disso. Na lógica albertiana de perspectiva, a profundidade se dá com a projeção de um triângulo virtual cuja base são os olhos do espectador e o vértice o ponto de fuga no centro do quadro. Na imagem final do zoom out, a base do triângulo são os nossos olhos e o vértice os olhos de Alex. Os segundos iniciais são por si só bastante fortes: o vermelho e azul vibrantes dos créditos machucam as nossas retinas até finalmente sermos encarados pelo protagonista. Apesar de nossa repulsa pela personagem, Kubrick nos liga profundamente a ela, conectando nossos olhos aos olhos de Alex. Essa ligação ainda se cumpre nos vários planos subjetivos ao longo do filme onde assumimos a percepção da personagem, em plena identificação com a mesma. E sem nos darmos conta, a narração em off já nos trata como "meu velho e leal amigo", antes de termos tempo de fazer qualquer protesto. Alex é nós e nós somos Alex, e quando seus algozes são monumentalizados em contra plongée, também nos tornamos as vítimas dos mesmos.
Não que Kubrick não nos fira de outras maneiras. É interessante como o cineasta lança mão até do expressionismo alemão para compor imagens de grotesco, vide os closes na cena de ataque dos mendigos ou a figura caricata do escritor de Patrick Magee, o qual com um quê de Dr. Mabuse. Os jogos de antecipação também são úteis nessa violência, quando o filme subverte nossa expectativa à Singing in the Rain, transformando o tema antológico do musical em uma música de estupro. Mas Kubrick também cria imagens de empatia. O próprio Malcom McDowell transmite uma vulnerabilidade quase infantil no seu rosto de menino, iluminado pelos olhos azuis, por mais que ele o subverta com os cílios postiços da fantasia. Esse figurino, inclusive, é outro instrumento retórico por converter a violência em moda: a delinquência do grupo também é assumida por uma identidade visual, a qual foi efetivamente apropriada pela cultura pop posterior ao filme. A dicotomia vítima/algoz que permeia toda a narrativa é outro recurso definitivo de empatia, embora assuma outra proporção quando demonstra que a violência é sempre consequência de uma relação de poder. No momento em que o outro está abaixo de nós ou sujeito à nossa vontade, a violência é o caminho mais inevitável, seja ela a violência de Alex contra suas vítimas, seja ela a violência das autoridades contra Alex, seja ela a violência de Kubrick contra aqueles que aceitem entrar no quarto escuro do cinema.
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