“Um governo do povo. Pelo povo. E para o povo.”
É difícil assistir aos últimos dois filmes de Steven Spielberg e não perguntar-se o que aconteceu com o cineasta:
Ao longo de seus 40 anos de carreira, Spielberg demonstrou ser um cineasta com enorme talento técnico para conduzir suas narrativas, bem como, aguçada percepção acerca da psicologia da platéia, utilizando-se dessa para levar seus espectadores a experimentarem diferentes emoções dependendo do que se propõe em seus filmes. Sendo assim, Tubarão mantém o público tenso do inicio ao fim apenas ao sugerir o perigo eminente, a abertura de O Resgate do Soldado Ryan choca com sua crueza e violência que atiram o espectador em um campo de batalha, A Lista de Schindler emociona com o realismo com que trata um tema difícil, Prenda-me se for Capaz diverte com as armações de seu protagonista. E a lista poderia continuar com mais um bom número de citações das obras do diretor, mas, se quiser comprovar seu talento, basta pesquisar sua filmografia e constatar como os filmes falam por si só.
Porém, em nenhum momento Cavalo de Guerra e, principalmente, Lincoln, nos lembram de que Spielberg é quem está no comando desses respectivos filmes. Tecnicamente mal dirigidos e nulas no desenvolvimento de suas narrativas, as duas produções passam a impressão de que Spielberg decidiu abandonar o cuidado com personagens e histórias - que eram os fatores que despertavam emoções em seus longas anteriores - e entrega-se a truques baratos, dignos de um diretor amador que “tenta” manipular os espectadores e consegue apenas despertar o desinteresse dos mesmos.
Baseado no livro Team of Rivals: The Political Genius of Abraham Lincoln, de Doris Kearns Goodwin, Lincoln aborda os últimos meses da vida de Abraham Lincoln, 16º e um dos mais famosos presidentes da história dos EUA. Acompanhando os últimos meses de governo (e vida) de seu protagonista, a história foca-se em sua batalha para instituir a 13ª emenda na constituição americana e assim, dar um fim à Guerra Civil Americana e claro, à escravidão no país.
Esquecendo-se que o simples fato de retratar uma personalidade famosa não o isenta de desenvolver seu personagem e suas motivações, Spielberg e o roteiro de Paul Webb e Tony Kushner contam com a identificação do espectador com a trajetória real de seu protagonista para sucesso do filme e assim, apenas afastam mais ainda o espectador da produção. Não que os roteiristas não tentem por vezes dar maior tridimensionalidade ao presidente, afinal, são visíveis os momentos escritos com apenas esse propósito, o problema é que os próprios roteiristas não sabem como querem retratar Lincoln:
Se em certo momento o presidente americano parece alguém cansado do confronto entre os estados do sul e do norte, em outras ocasiões apresenta-se como alguém disposto a estender o confronto por tempo indeterminado para tentar levar à aprovação da 13ª emenda. Da mesma forma, cenas como Lincoln discutindo com seu filho ou com sua esposa, parecem terem sido escritas com o único propósito de criar algum tipo de confronto pessoal para seu protagonista, já que nada acrescentam ao desenvolvimento da narrativa – aliás, a esposa de Lincoln e seus dois filhos poderiam ter sido eliminados do filme sem o mínimo prejuízo para o longa, já que tudo que fazem é quebrar o ritmo do filme quando surgem na tela (e a trama envolvendo o alistamento do filho mais velho do protagonista é risível, lembrando a relação do personagem de Tom Cruise e seu filho em Guerra dos Mundos). Além disso, a insistência em pintar o presidente como uma figura integra enquanto suas ações o contradizem chega a ser irritante, já que, sabemos reconhecer que suas “trapaças” são por uma boa causa, não precisando-se de cenas que lembrem disso à todo instante.
No entanto, se em sua narrativa Lincoln é terrivelmente falho, em seus aspectos técnicos merece elogios: contando com uma irrepreensível reconstituição de época que, por meio dos figurinos e da ótima direção de arte, nos transporta para o ano de 1865, o filme ainda encontra na fotografia do habitual colaborador de Spielberg, Janusz Kaminski, um de seus pontos mais altos, já que as imagens cuidadosamente compostas por Kaminski com o uso de tomadas em contra-luz tornam o filme (ao menos) visualmente belo.
Mas, se Kaminski se mantém alheio ao fracasso de Spielberg e se destaca positivamente, o mesmo não pode ser dito de John Williams: compositor presente em praticamente todos os longas do diretor (a exceção é A Cor Púrpura, de 1985), Williams compartilha do fracasso artístico do realizador entregando (assim como fizera em Cavalo de Guerra) uma trilha instrumental genérica e que tenta à todo o momento comentar a narrativa ao invés de complementá-la. Assim, se o que vemos na tela deveria emocionar, Williams imediatamente eleva os acordes de suas composições melancólicas, informando o espectador os sentimentos adequados para a cena, se a montagem apresentada em tela se pretende “engraçadinha”, o compositor utiliza-se de uma trilha de sitcom para tentar arrancar humor de uma situação que tem tanta graça quanto um quadro do Zorra Total.
E, se Lincoln ao final desse texto não vai receber apenas 1 estrela, é por que Daniel Day-Lewis empresta dignidade à produção: conferindo ao protagonista o peso negado pelo roteiro, Day-Lewis, ator de enorme talento para compor os mais variados tipos de papéis, entrega uma performance diferente de todas em sua carreira, apostando nas sutilezas para compor o presidente americano, distanciando-o de caracterizações marcantes em sua carreira. Com a postura curvada, arrastando os pés ao caminhar, o Lincoln de Daniel Day-Lewis é um homem cansado das responsabilidades de seu cargo ainda que, isso não o impeça de manter o tom de voz sempre calmo e sussurrado (o trabalho vocal de Day-Lewis é espetacular, levando o espectador a aceitar que essa era realmente a voz de Lincoln) e a expressão serena– e quando esse tom sofre alguma alteração, Day-Lewis consegue conferir peso e seriedade à cena.
Sendo assim, é uma pena que seus colegas de elenco não consigam acompanhar sua performance: Sally Field, no papel da esposa de Lincoln, Mary Todd, é prejudicada por uma personagem sem peso na narrativa e surge caricata tal qual uma atriz da novela das nove, sendo engolida toda vez que divide a cena com seu colega de elenco – a atriz protagoniza o momento mais constrangedor do filme, quando sua personagem discute com o marido e a atriz se joga no chão e grita, como se o simples histerismo de seu over acting fosse tornar sua atuação melhor do que realmente é (e não torna). Já Tommy Lee Jones, continua resumindo suas atuações à surgir carrancudo e sem expressão na tela (o que já lhe rendeu um Oscar de Melhor Ator Coadjuvante, por O Fugitivo, em 1994 – algo extremamente injusto). E melhor nem comentar o desperdício de Joseph Gordon Levitt, ator em franca ascensão na indústria cinematográfica e que aqui resume-se à um enorme nada na trama.
Enorme nada. Frase curta que define o peso de Lincoln – que ainda encontra tempo para ser encerrado com o mais risível plano de toda a carreira de seu realizador (o presidente discursando sobreposto à uma vela, sério Spielberg?) - na filmografia de seu diretor.
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