Para os cinéfilos de primeira viagem, o (bizarro) subtítulo “O Vampiro de Dusseldorf”, concedido em terras brasileiras ao filme “M”, de Fritz Lang, revela-se como uma verdadeira furada. Durante toda a fita não há a aparição de quaisquer chupadores de sangue, muito menos de qualquer outra coisa de cunho sobrenatural. No entanto, e curiosamente, essa mesma desconstrução do subtítulo já representa uma síntese da poderosa experiência a ser evocada pelo longa-metragem. Mesmo que a narrativa já se inicie sob um tom de grande alarde e tensão, “M”, de um mero romance policial, torna-se o instigante e complexo estudo sobre imagens em contínua ressignificação e sobre olhares em constante receio, armadilha e excitação – e nisso se envolve não apenas nosso olhar como espectadores, mas também nosso olhar como cidadãos.
Fritz Lang instiga a nossa visão a todo momento. Seja nas belas e abrangentes locações externas, seja nos cenários mais intimistas e apertados, a câmera procura manter um certo distanciamento em relação a suas personagens, capturando, de planos gerais a primeiros planos, tanto o tronco ou o semblante de dada personagem quanto alguns dos ricos detalhes da cenografia (e mesmo o conjunto de diferentes mise-en-scéne). Nesse distanciamento, inclusive, igualmente temos uma significativa perspectiva por parte dos quadros, a qual, em sua profundidade quase centrípeta, só contribui para uma imersão ainda mais visceral nas potencialidades e estilizações da imagem. Portanto, além do acompanhamento espontâneo da narrativa, nosso olhar é constantemente convidado a percorrer e vasculhar os aposentos, florestas, vielas e corredores, e mesmo nas sequências onde aparentemente não há nada demais a ser olhado, o cineasta ainda consegue formar uma imagem atraente (por exemplo, a discussão paralela entre os mafiosos e os policiais, em que uma elegante cortina de fumaça, oriunda dos charutos e cigarros consumidos, passa a tomar conta do quadro, como se fosse um símbolo daquele cenário sufocante).
Nesse sentido, também é interessante analisar o papel da trilha sonora (trata-se do primeiro filme sonoro de Fritz Lang). Em várias passagens do filme, a trilha é de toda inexistente; pede-se um silêncio quase absoluto para a pura contemplação dessas imagens. No entanto, o som em verdade possui uma relação dialética com nossa visão: ao denunciar, muitas vezes, o extracampo da câmera (a buzina do automóvel que quase atropela a pequena Elsie Beckmann), ele “distrai” nosso olhar em relação àquela imagem delimitada pelo enquadramento, mas também enriquece essa imagem na medida em que aponta a sua expansão pelo espaço (e as próprias limitações da câmera em capturar essa totalidade tão transgressora). De fato, o assassino tem como hábito (ou “marca registrada”) o seu assovio: a música que distrai os investigadores obcecados pelas pistas visuais e a música que igualmente os leva ao seu objetivo quando reconhecida pelo mendigo (não por acaso) cego.
Mas qual o objetivo desse ato de observação às vezes tão obsessivo como as investigações dos policiais e mafiosos? Porque a câmera deseja capturar seus cenários e personagens de forma tão abrangente? Porque ela chega a se dedicar a momentos quase puramente contemplativos, como no travelling que observa os objetos apreendidos na casa noturna ou o plano-sequência que, sem quaisquer pudores, observa o grupo de mendigos reunidos numa espécie de restaurante (e que se dirige, súbita e invasivamente, para o cenário da próxima cena)? E porque as imagens são convocadas até durante a leitura de relatórios ou durante a narração de recentes episódios? A resposta está na complexidade dessas imagens. Um único quadro pode conter nuances, detalhes e sutilezas o suficiente para evocar uma verdadeira gama de significações e novas perspectivas. Quando, na casa noturna, pensamos ver uma área vazia do local, contendo somente um cabideiro e uma cortina branca, descobrimos em seguida que há um homem escondido por detrás do cabideiro e que por detrás da cortina branca há uma passagem secreta para a rua (e por fim, descobre-se que a mesma passagem já está bloqueada pela polícia).
Da mesma forma, quando o assassino Hans contempla a vitrine de uma loja, seu rosto é “emoldurado” pelo reflexo de um jogo de facas de cozinha, e sob outro enquadramento o mesmo jogo passa a emoldurar uma garotinha, logo alvo dos interesses psicóticos do maníaco – e mais à frente, ao perseguir a menina, Hans passa na frente de uma livraria cuja vitrine possui uma “inocente” seta movediça, que não demora a remeter à perturbadora ideia de um falo em movimento. E além das desconcertantes sugestões e de outras pequenas “surpresas” (como alguns repentinos closes que quase agridem o espectador), o próprio enquadramento da câmera igualmente determina novos significados, como o plano que desconstrói a autoridade do Inspetor Lohmann (Otto Wernicke), capturando-o por debaixo da escrivaninha, num enfático enquadramento de suas pernas e virilha. Por fim, além das imagens em si, existem os sentidos criados pela associação entre essas imagens, a ser efetuada pela montagem. Além do impacto dos quadros que sugerem a morte da garotinha Elsie Beckmann, a comoção torna-se maior quando tais quadros são contrapostos à imagem da mãe: tão dedicada aos preparativos do almoço da filha e logo preocupada com o atraso da criança. E o que dizer, então, da ironia criada pela montagem quando esta articula (de forma brilhante, diga-se de passagem) as discussões de um grupo de mafiosos e de um grupo de policiais, como se ambos fossem o lado de uma mesma moeda?
No final, essa subversão da imagem repercute na própria narrativa. Além dos mafiosos que se convertem nos “mocinhos” que caçarão o bandido, temos, na mesma empreitada, os mendigos, as figuras mais indesejadas do cenário urbano, tornando-se os “vigias” das ruas, os “guardiões” que protegerão as crianças do assassino. O próprio clichê do clássico filme de perseguição acaba sendo ressignificado na medida que o perseguido é um “cidadão comum” (e covarde) e os perseguidores são mafiosos, os “bandidos” (e nisso vemos até a invasão de um prédio de departamentos feita não em função de um roubo mas de uma causa aparentemente justa). Mas claro, a maior subversão da narrativa se aplica ao assassino Hans (Peter Lorre), ou “M” como acaba sendo quase literalmente rotulado. A princípio identificado apenas por sua sombra e logo depois visto apenas de costas para a câmera, Hans é finalmente enquadrado (mesmo que a partir do reflexo de seu espelho) como um homem de semblante esquizofrênico, numa imagem praticamente caricatural de um demente. No entanto, os mesmos olhos esbugalhados de Peter Lorre, sinalizadores de uma patologia intensa, não demoram a se converter em olhos de extrema vulnerabilidade e terror.
Mais especificamente, a partir da extrema violência dos assassinatos, a população raivosa deseja ver Hans como um vilão unidimensional. No julgamento final, quando “encurralado” pelas imagens das crianças que violentou e assassinou, Hans, em sua tentativa de fuga, distancia-se da câmera e mergulha no quadro, tornando-se menor e mais indefinido. Ele não é Hans, é “M”, o monstro que todos tanto desejam exterminar. Mas quando a câmera se debruça sobre Hans, durante seu desesperado discurso de defesa, ela se aproxima do homem por detrás do maníaco. Não que esse homem já não fosse denunciado antes, nas breves cenas em que parece francamente lutar contra seus impulsos. Todavia, é principalmente a partir de seu desabafo que os olhos esbugalhados, de uma caricatura de um doente, convertem-se em olhos trágicos que clamam a compreensão e a misericórdia (e nisso deve-se mencionar a visceral composição e performance de Peter Lorre). Aliás, essa cena em específico subverte, além do “criminoso”, o próprio espectador. Se antes ansiávamos pela captura do “M”, num certo sadismo camuflado pelo desejo de vingança contra o “vilão”, logo somos desafiados, se não sabotados, pela humanização desse vilão. É fácil e mesmo preferível condenar “M” pois não há culpas perante o extermínio de um monstro unidimensional; quando descobrimos Hans ficamos cientes do homem decadente e trágico que se encontra sob nosso julgamento: a responsabilidade por essa vida humana, de pulsões e transtornos tão incontroláveis para ela própria, pesa em nossa condenação.
É nesse ponto que o filme “M” lança uma perspicaz visão a respeito da cegueira de uma massa em fúria. A população raivosa não deseja um mínimo de piedade para seu monstro, não enxergando a complexidade do que está sendo analisado e julgado (e Fritz Lang é brilhante ao contrapor essa multidão quase possessa com o único e solitário homem que decide defender Hans). Mas é da massa quase irracional em sua raiva e ameaça que se alimenta o fascismo. O nazismo, que na época de produção e lançamento do filme já se consolidava na Alemanha, pauta-se justamente na cegueira, na falta de uma visão apurada que vislumbre a complexidade desafiadora de uma imagem (mesmo que as cabeças do fascismo tenham profunda ciência dessa complexidade). Daí, portanto, a ânsia de “M” pela profunda contemplação dos quadros, planos e sequências. Fritz Lang incentiva o olhar de seu espectador, deseja que ele se atenha às nuances desafiadoras da imagem pois estas, na desalienação da análise, lhe trarão significados que influenciarão sua própria maneira de interagir com a sociedade e com o mundo como um todo – e apenas esse ato de visão, consciente e aprofundado, que libertará a massa da irracionalidade do fascismo. Essas imagens, por fim, permitirão ao espectador enxergar a ineficácia do linchamento de uma multidão raivosa ou de uma justiça estatal distante, fria e quase vazia. A situação não mudará. As crianças continuarão em perigo. E em vez da celebração pomposa dos “mocinhos” vitoriosos do romance policial ou do grand-finale de um empolgante filme sobrenatural, nos restará o desolado lamento das mães em luto – um corte seco e amargo que, esse sim um vampiro, sugará as últimas energias da imagem, convertendo-a em silencioso e trágico quadro-negro.
O melhor deste gênio que foi Lang. A composição visual de seus filmes ainda impressionam. Sobre o texto, nada a dizer. Basta ler e aplaudir. Parabéns...😉
Obrigado! 😁