Atualmente, na televisão americana temos os mais variados tipos de séries. Há algumas insuportáveis, como Glee (2009), as fracas Grimm (2011) e Following (2013), as sempre interessantes como House MD (2004), as Obras-Primas que acabaram por se matar como Dexter (2006), e as excelentes de fato, como Breaking Bad (2008) e Mad Men (2007). Mas por trás disso tudo, está um cuidado muito grande dos norte-americanos com seu programa televisivo - no que se diz as séries, o resto ainda pode ser considerado inútil. As séries já não são mais televisivas, ousam no roteiro, respeitam o telespectador, até fotografam de forma belíssima. Aqui no Brasil, não chegamos a um nível tão alto, mas mesmo assim é demonstrado um cuidado a mais ao que se refere ao produto televisivo - pelo menos em sua técnica. O mesmo pode ser dito pelo resto do mundo. Salvo algumas exceções, como O Decálogo, uma minissérie polonesa dirigida por Krzysztof Kieślowski.
Se antigamente, uma série ou outra se destacava de década em década, hoje em dia, é de 2 em 2 anos. Há quem diga que isso começou com o roteiro de Família Sopranos (iniciada em Janeiro de 1999), que veio a inspirar muito à televisão norte-americana.
Só que em 1974 (ou melhor, em 1970, a estreia na TV alemã do diretor) Rainer Werner Fassbinder já sabia a importância do produto televiso de qualidade. Ele ousava, fazia estórias bem elaboradas, e principalmente, bem filmadas. Praticamente, um cinema em casa. Seu objetivo era atirar para todos os lados, no bom sentido, atraindo o maior tipo de público que pudesse conseguir. Deixando de lado a telona, mas não sua genialidade. Teve alguns trabalhos mais reconhecidos, como a minissérie Berlin Alexanderplatz (1980). Acertando literalmente os alvos. Muito cineasta ainda vê as séries atualmente como inimigas do cinema, ou os filmes televisivos como algo imundo, carente de inteligência (e a maioria realmente é); entretanto, por que não levar sua genialidade para outros tipos de transmissão audiovisual? Por que pensar tão pequeno? Por que restringir-se ao mínimo? Para os menos talentosos, a ambição devora a alma, e leva junto o seu trabalho. Para Fassbinder, era uma chance de mostrar que seu talento não mudava com o tamanho da tela.
Martha (Margit Carstensen) é uma típica mulher alemã burguesa de seu tempo, magra (aqui, em excesso) e de lindos cabelos avermelhados, branca e de sobrancelha quase inexistente. Tipíco também é o que ela representa, uma Alemanha carente, perdida e que se submete a qualquer coisa, desde que isso a faça ser bem vista. Não tem personalidade, não é uma mulher moderna, o direito e a luta dos sexos aqui não existe, também não pertencia a um país moderno. Logo no início, vemos a fria relação de Martha com seu pai (Adrian Hoven), que depois de passar mal ao subir uma escada acaba morrendo. Aliás, essa cena é muito interessante. Sua mensagem é muito direta. Um velho cai morto em uma escada, sua filha desesperada deixa sua bolsa cair, uma multidão parece se importar de repente, uma mão masculina com uma aliança (que não dá a impressão de ser de alguém pobre) pega a bolsa sem que ninguém veja, Martha esquece o pai, começa a lamentar sua bolsa. Matem a minha família, mas não roubem os meus pertences.
É na embaixada alemã em Roma, que ela conhece de passagem um homem, em uma das cenas mais vertiginosas de toda a história do cinema, em que a câmera dá uma volta completa ao redor dos dois. É o plano de 720º (360º + 360º), inventado por Michael Ballhaus, o diretor de fotografia de Fassbinder em Martha (ou Kamera, como é apresentado nos créditos). Após essa rotatória, Martha encontra-se atrás das grades do portão da embaixada olhando atentamente ao táxi partindo do então desconhecido. É a partir desse momento, desse fugaz momento, que ela estará presa a esse homem. Presa ao seu amor? Improvável que ele conheça isso. É Balhaus o responsável por delírios na câmera em alguns filmes de Scorsese, como não citar Goodfellas (1990), em particularidade a cena em que Henry Hill leva a sua namorada a um daqueles famosos bares subterrâneos de Nova York, ali é feito um dos famosos plano-sequência que se estende da rua, as escadarias, a cozinha do bar, indo terminar na mesa de jantar do casal, em frente ao palco da apresentação principal. Poucas combinações no cinema são tão deliciosas como quando um diretor de fotografia genial encontra um cineasta genial. Fassbinder e Balhaus ou Scorsese e Balhaus, representam lindamente esse par.
Helmut Salomon (Karlheinz Böhm) é um homem rico, frio, sádico e extremamente inquisitorial. Ele se casa com Martha, e a partir disso suga toda a sua vida e o que ela conhecia como privacidade. É um machismo latente, Helmut tira Martha de seu emprego sem ao menos avisá-la, seria horrível uma mulher com um homem bem afortunado continuar trabalhando. É a representação da caça e do caçador, Helmut é um predador nato, seja fora de casa, como um empresário bem sucedido ou dentro dela, como um altivo marido. É ele quem escolhe onde Martha vai fumar, que música vai ouvir, o livro que deve ler e até se deve ou não passar protetor solar. Heldum deixa de ser um marido, torna-se um autêntico Führer. Martha irá ser submetida aos piores horrores, enojando qualquer um com um pingo de bom-senso, menos a própria Martha. Que não só parece aceitar tudo aquilo com a carga emocional mais normal do mundo, como aparenta ser esse seu objetivo. Agradar Helmut, agradar um homem, agradar alguém. Mas no decorrer do filme, nem ela passa mais a suportar tamanha loucura. E aí entra a ambiguidade do cinema e das mulheres de Fassbinder, basta alguém falar mal de Helmut ou de seu casamento, que ela ataca com unhas e dentes; entretanto, se alguém considera tudo aquilo normal e passageiro, sua contradição é quase imediata. Seu marido parece nunca estar satisfeito com nada, não só a proíbe de sair de casa, como está disposto a aniquilar qualquer espécie de vida que venha a ter contato com sua esposa (como o gato em que ele possivelmente matou). Caso Martha não conhecesse o significado de ditadura, ela passará a vivê-la da forma mais pessoal possível.
Tudo isso no que era para ser um simples filme televisivo, são as belas surpresas do audiovisual. Machismo, nazismo, servidão, violência, obsseção, autoritarismo e até mesmo o facismo, todos representados nesse fantástico drama alemão. A imposição autoritária que Martha sofre de seu marido simboliza o controle físico e mental do nazismo sobre os alemães, o que se deve ler e ouvir, como viver em uma terra manchada de sangue? Um sangue que ainda não está totalmente seco. De certa forma isso leva a Michael Haneke e seu A Fita Branca (Das weiße Band, 2009), que analisa de várias formas o nascimento do mal que assolaria o mundo. Aqui, não é o antes, mas o que restou, o medo de não deixar isso crescer, embora esteja sempre subversivo. De qualquer ação, o depois é sempre o pior.
Comentários (0)
Faça login para comentar.
Responder Comentário