O cinema de animação sempre carregou uma sina de ser feito exclusivamente para o público infantil. Por mais que, por exemplo, a Pixar tentasse, em algumas de suas animações, como “Ratatouille”, tentasse dar um tom mais maduro à história – o exemplo supracitado aborda o efeito da mídia sobre a opinião das pessoas, assunto não muito assimilável para os pequeninos – as sessões de seus filmes costumam se abarrotar de crianças. Mas o mais difícil é encontrar um exemplo de animação adulta séria, que aborde temas que séries cômicas como “Os Simpsons” não contemplem. Adam Elliot, que já havia feito uma experiência parecida com o curta premiado “Harvey Krumpet” (2003), chega em “Mary and Max” para destrinchar temas com uma intensidade que poucos filmes live-action conseguem.
O enredo do filme, também feito por Elliot, possui como cerne a amizade por correspondência de duas pessoas, separadas, literalmente, por um mundo inteiro. Uma delas é Max Jerry Horowitz (dublado, na versão original, pelo premiado Phillip Seymour Hoffman), um nova-iorquino de quarenta e quatro anos que é a personificação de tudo que a América repudia: ateu de origem judaica, obeso, ex-comunista (se é que alguém pode ser isso) que nunca conseguiu ter, aos olhos da sociedade, um trabalho digno. Não conseguindo, desde a infância, estabelecer um relacionamento estável com ninguém (até por causa da sua, como se revelou no desenrolar da trama, síndrome de Asperger, um transtorno mental que afeta a relação do indivíduo com o mundo e afeta drasticamente sua estabilidade emocional), por um acaso, ele passa a trocar correspondência com Mary, uma menina australiana, que vê em Max alguém que pode responder seriamente os seus questionamentos.
Mary é quase uma versão aussie da Mafalda do cartunista Quino, conseguindo observar e compreender fenômenos sociais dentro da inocente lógica do ponto de vista de uma criança. Sendo feia, baixinha e com um estranho sinal de nascença na testa, Mary jamais conseguiu se relacionar bem com os seus colegas da escola. E em casa sua situação é ainda pior. Sua mãe é alcoólatra a cleptomaníaca, e praticamente ignora a existência da filha e a sua vontade de realmente entender o que acontece, situação que possui como agravante a ausência de seu pai. Ao começar a trocar correspondência com Max, Mary finalmente conhece alguém que, ainda não possa responder por completo suas indagações, realmente goste de ter contato com ela. Fica claro aí o que pode ser visto até como uma ironia. Um homem obeso de meia-idade possui como pessoa com que mais se assemelha uma menina de oito anos que mora do outro lado do mundo. Ambos, apesar de terem visões diferentes, possuem o mesmo tipo de dúvida sobre o mundo.
A parte técnica do filme é um show à parte. Logo na sequência de abertura, Elliot nos brinda com uma apresentação da cidade no qual Mary mora. Os detalhes dos cenários, feitos em massinha principalmente, são absurdamente fantásticos, desde o seu preparo, passando pela fotografia até a própria iluminação. É interessante notar o tom dos lugares. A cidade e os locais em que Mary aparece são em um tom amarronzado, pois essas sequências partem do ponto de vista de uma criança que, obviamente, vê o mundo como se fosse de chocolate! Já Nova Iorque, terra de Max, só possui duas cores: preto e branco. Isso porque Max não vê mais nenhum atrativo, nenhuma graça no mundo. Todas as suas crenças, até mesmo as políticas e religiosas, se perderam porque, até mesmo quando ele tenta mudar isso, fracassa. Um exemplo dado no filme são as suas sessões de terapia em grupo, nas quais é flertado por uma estranha mulher, que acaba tornando-o ainda mais nervoso. A trilha sonora, em especial a abertura feita em piano acompanhado de orquestra, é belíssima.
A trama vai ganhando um novo tom à medida que Mary cresce e sua compreensão do mundo também. Entretanto, Max, que tem a idade mental de uma criança, não acompanha esse desenvolvimento. Aí a relação muda. Mary passa a quem responde e tentar satisfazer os anseios de Max. Porém, suas crises de pânico pioram após ele conhecer as complexas ideias que Mary apresenta sobre o seu transtorno. Porém, na sequência final, Mary descobre que Max a considerava, mesmo só relacionando-se com elas através de cartas, como o seu canal para o mundo exterior. É fascinante ver Max, que sempre teve dificuldade em interpretar e até mesmo fazer expressões faciais, ficar, mesmo morto, olhando para as cartas de Mary com um sorriso no rosto.
É difícil achar um filme que aborde tantos temas delicados, principalmente para uma animação. Solidão, alcoolismo, alienação do trabalhador, autismo, fobias, transtornos mentais e de comportamento, homossexualidade, depressão, suicídio. Mesmo que o espectador não se enquadre em nenhum desses casos, é impossível não se identificar com a verdadeira amizade que surgiu entre seres ao mesmo tempo iguais e diferentes, compartilhando suas visões de uma sociedade desolada.
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