Os japoneses são um povo peculiar. Possuem uma longuíssima história, marcada especialmente por sua rica cultura, que os levou a serem uma nação fechada durante séculos. Mesmo durante a Era Meiji, período de início da abertura do Império do Sol Nascente, não ocorreu um intercâmbio cultural de fato entre o Japão e o Ocidente. Isso começou a mudar com a ocupação norte-americana no Pós-Segunda Guerra Mundial, onde ocorreu uma coisa curiosa: diferentemente dos demais países que sofreram com a globalização, onde a cultura local foi rejeitada em favor da estrangeira, os nipônicos incorporaram elementos ocidentais em seus objetos culturais, em especial a arte, mais em especial ainda o cinema.
No clássico do cinema de animação “Tonari No Totoro”, de Hayao Miyazaki, uma família, composta por um homem e duas filhas, Satsuki (mais velha) e Mei (caçula), se muda para uma casa de campo. A mãe das meninas está muito doente em um hospital que fica a horas de distância dali. Logo nos primeiros dias, as duas pequeninas começam a explorar o local, e descobrem coisas realmente fantásticas por lá.
A proposta do filme é uma ode à inocência das crianças. Na primeira aparição delas, ainda no caminhão e mudanças, fica claro que elas vivem em um mundo à parte do mundo dos adultos. Eles ficam encolhidas, dentro dos móveis e demais objetos da casa, bem guardadas dentro do caminhão. E quando elas chegam ao seu destino, descem por uma ponte, seguida por um túnel de árvores, como a Satsuki ainda enfatiza nesse momento. Parecem que saem de uma dimensão e vão para outra. Aqui a sutileza do Miyazaki em criar essas analogias fica clara! Esse é um filme sobre o maravilhoso mundo das crianças.
O bom e velho Hayao faz máxima questão de mostrar o filme do ponto de vista das meninas. Como são crianças, elas não têm noção da gravidade da situação, com sua mãe doente no hospital e o seu pai tendo de viajar constantemente para a universidade. Para elas, tudo aquilo era pura diversão. Um momento que demonstra como as crianças estavam alheias a todos esses problemas é quando as duas estão chutando uma pilastra de madeira podre da casa e se divertindo com isso, sem pensar que, se aquilo caísse, elas poderiam se machucar. Sobre a sua mão estar doente, elas não pensavam no pior. Apenas imaginam quando ela iria voltar, para dormir com elas. Não havia tristeza no mundo delas.
São três as crianças que são importantes no filme, cada uma delas em uma etapa diferente da infância. Satsuki é uma menina um pouco mais velha que sua irmã, provavelmente na faixa dos sete ou oito anos. Quando ela chega na casa nova, logo vai explorá-la com Mei, mas logo depois vai ajudar o seu pai a carregar os móveis (um demonstração de maturidade), enquanto sua irmãzinha continua brincando. Quando as duas vão visitar a mãe no hospital, Mei abre a sua boca enorme para falar que a casa nova e mal-assombrada, enquanto que Satsuki o faz de modo mais discreto. Isso já pode ser visto como um sinal do começo da perda da inocência em Satsuki. Outra cena em que isso fica mais claro é quando Satsuki vai buscar água para o seu pai, e Mei pergunta se ela vai pescar. Existe ainda uma terceira criança, um menino, talvez ainda mais velho que Satsuki. Seu nome é Kanta e ele aparece o tempo todo realizando trabalhos como o de um carteiro, sempre usando um indefectível quepe, parecendo um projeto de workholic (o tipo mais chato de adulto!!!). Ele representa o fim da infância.
Eis que, depois de apresentado esse cenário, chega o momento, o grande momento! Totoro e as demais criaturas da floresta são apresentadas ao espectador, que é capaz de vomitar um arco-íris com tanta fofura! Tudo é lindo, desde a próprio desenho, passando pela trilha sonora (simples, com vários arranjos feitos com sintetizadores, mais incrivelmente tocante) até a reação das meninas ao conhecer tais seres. O que foi dito no primeiro parágrafo desse texto aparece aqui: cultura japonesa, representada pelos espíritos da floresta (elementos do xintoísmo, principal crença espiritual do Japão) com pinceladas da cultura ocidental. Miyazaki escolheu ninguém menos que “Alice no País das Maravilhas” de Lewis Carrol para homenagear em algumas sequências. Falemos aqui de duas delas. No primeiro encontro com o fofinho Totoro, Mei atravessa um túnel e, quando vê o gigante peludo, parece que ela diminuiu. Referência ao primeiro encontro de Alice com os seres mágicos como o Coelho Branco. Outro momento é quando um gato sorridente aparece como um ônibus para as meninas e o próprio Totoro. Gato esse que é idêntico ao Gato Risonho da obra do escritor inglês. O ambientalismo, corrente na qual Miyazaki é defensor, também se faz presente aqui, em especial quando o pai das meninas, ao falar sobre o Totoro com elas diz a bela frase “Árvores e pessoas devem ser bons amigos”.
Mesmo quando um gato-ônibus voador gigantesco passa por eles, os adultos não veem nada disso. Porém, quando a mãe de Mei e Satsuki recebe um presente delas, ela tem uma impressão, por apenas uma fração de segundo naquele momento realmente emocionante, que viu as duas. Uma hora, a inocência da infância acaba. Por mais doloroso que seja, isso faz parte da vida. É amadurecer. Porém, a mensagem que Miyazaki deixa aqui não é a de ter uma visão infantil e inocente para o resto da vida, mas de não abandoná-la por completo e guardá-la porque em alguns momentos, mesmo quando se é adulto, é preciso resgatar o velho espírito de criança para melhor apreciá-los.
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