Em sua filmografia, Ingmar Bergman nunca poupou sua predileção por protagonistas femininas, exibindo um constante fascínio por esta figura, capturando de forma singular os desejos, os conflitos internos e o papel da mesma na sociedade. Em "Mônica e o Desejo", o cineasta retorna a esse olhar peculiar (sobretudo levando-se em consideração a época em que se passa a obra), mas nunca se repetindo.
Influenciado pelo movimento social e cultural existente pós-segunda guerra, "Mônica e o Desejo" reflete os anseios da juventude daquele período, num filme que não obstante exale uma impressão de já ter sido visto em algum lugar, tal como um casal de jovens que, infelizes e insatisfeitos com suas tediosas vidas, deixam sua rotina e obrigações de lado e passam a viver de forma livre, sem horários e sem preocupações de ordem social - tal como preocupar-se com uma aparência que no fundo não passa de um artifício enganoso para terem seu lugar em sociedade. No entanto, trata-se de um filme de Bergman, e portanto, nunca se deve ficar numa visualização superficial de algumas abordagens, por mais triviais que possam parecer.
Pois o que se tem neste longa é o retrato do fim da inocência, sobretudo por parte de Harry, mas por que não, também de Mônica, que ao deparar-se com algumas dificuldades não esperadas, passa a sofrer, muito embora não tenha o sentimento de querer voltar ao tédio rotineiro que levava em seu trabalho, muito menos aos recônditos de seu lar, onde nunca se sentia acolhida, seja pelos barulhentos irmãos, seja pelo violento pai, que alheio aos problemas da casa deixava tudo sob a responsabilidade da esposa, que afeita ao trabalho do lar, esquecia seus filhos. Daí o fim da inocência de Mônica não ser tão abrupto, visto desde há muito já ter um espírito independente, sendo sua saída de casa uma mera confirmação de sua não disposição a uma vida ordinária e submissa como a da mãe. Quanto a Harry, muito embora o mesmo já tivesse trabalho e auferisse renda, a inocência ainda não o havia deixado, e isso é demonstrado pela forma como se sentia dependente da família e pela forma atrapalhada como exercia seus serviços para o empregado, revelando uma imaturidade ainda mais evidente que a de Mônica, a qual mesmo já tendo sido criada numa espécie de "caos", por vezes portava-se como uma criança birrenta, sempre aos berros, o que também não viria a mudar quando da sua aventura e de Harry pelos arredores de Estocolmo, quando passam a vivenciar dias de libertação às amarras que a sociedade criou para si.
Ocorre que não demora muito para que a ilusão construída pelo jovem casal se desfaça, e é quando descobrem estarem esperando um filho que as coisas mudam abruptamente. A preocupação por uma alimentação mais adequada é o primeiro dos problemas, revelando que, infelizmente (ou felizmente, dependendo do ponto de vista), no atual estágio da humanidade, não conseguimos mais viver às nossas próprias custas, tendo a natureza como suporte para satisfação de necessidades. E aí entra todo o papel da sociedade na construção de seus indivíduos, tornando-os dependentes do sistema. Daí que o mais regrado dos dois (Harry) quer logo voltar à rotina de trabalho, estudar Engenharia, e garantir o conforto da mulher e da criança a nascer.
Mônica, claro, representa o rompimento dos padrões sociais, sendo ainda mais interessante como Bergman a mostra como uma mulher tão independente, que nem mesmo uma situação que demanda mais cuidado, é passível de fazê-la voltar ao padrão da vida anterior, nem que para isso precise furtar comida. É dessa forma que o cineasta sueco vai fazendo inversões no que se convencionou chamar de "funções" pré-definidas que homens e mulheres devem exercer. Quem vai atrás de mantenças não é o homem, mas a mulher. Quem trai o cônjuge quando os percalços de se cuidar de uma criança começam a surgir não é o homem, mas a mulher. E é assim que Bergman vai costurando uma história de descobertas: da liberdade, da beleza do mundo, para depois descobrir-se que aqueles personagens não eram tão livres assim, nem o mundo tão belo.
Pois da forma como um senhor que se vê num espelho no início do filme numa cena aparentemente sem nenhuma função, entendemos o que de fato quer nos ser transmitido: que por mais que queiramos nos livrar do que nos é imposto, e mesmo que consigamos isso por algum tempo, no fim das contas teremos sempre que retornar ao árduo viver de nossas vidas, tal como vemos quando Harry, abandonado por Mônica, se olha no espelho, refletido da mesma forma que o velho homem do início, mas que apesar de jovem já tem que enfrentar problemas de adultos.
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