Por entre tantas sequências, cenas, imagens de Morte em Veneza (Death in Venice, 1971), permanece sempre uma mesma ideia. Quando Gustav (Dirk Bogarde) encontra pela primeira vez Tadzio (Bjorn Andresen), assumimos outro olhar, que até então estava oculto enquanto observávamos um curioso e rabugento músico que nos guiaria até o fim. De certo modo, essa cena, primeira que marca o “encontro” entre os dois sintetiza em imagens – zooms, travellings que viajam pelo ambiente fixos e tímidos em Tadzio – o drama de Gustav e sua busca pela “perfeição” e renovação em sua música.
Luchino Visconti trabalha com sua câmera do começo ao fim, explorando a figura do artista. Como se fosse uma sina do artista buscar, sem sucesso e incessantemente, a perfeição e sua respectiva figura. Do mesmo modo como Forman delineou Salieri em Amadeus (idem, 1984) guardada as devidas proporções, Gustav representa essa figura triste e solitária do artista e seu deslocamento – quase nunca vemos o mesmo perto de pessoas, mesmo quando em lugares cheios. A não tão bela e “fatal” Veneza, parece assegurar essa posição infernal (as doenças começam a embarcar na Europa) e tediosa para o músico até a chegada “inviável” de Tadzio, que torna seus sentimentos não mais em melancolia, mas em obsessão pela imagem, pelo símbolo, pela figura e consequentemente, em desespero de perde-la.
A ópera de imagens e movimentos de Visconti é também frenética na devastação do músico em torno da figura do rapaz. As memórias, lembranças, tragédias que se unem naturalmente ao tempo presente do músico justificam ao espectador a intensidade e necessidade da busca da perfeição. Gustav também encontra em Tadzio (rapaz inclusive com semelhanças físicas às de Beethoven), uma esperança, por isso a condução da imagem e a narrativa balança entre o caos e paraíso, pesadelo e sonho através da impossibilidade daquela situação que tanto perturba e encanta Gustav.
O desejo impossível do músico seria também a sua condenação? Longe de ser um desejo de sentido único, o caminho percorrido por Gustav é o de qualquer ser humano. A insatisfação, comum dos artistas, parece encontrar na lente de Visconti uma luz. Tadzio é a beleza, é a pintura, é a partitura, a nota, o som, a mulher, o homem e principalmente a inspiração, essa que se encontra na vida, não aprisionado no quarto discutindo a arte e a música, mas nas praias, nas praças, nas ruas. Essa descoberta, ainda que dolorosa, é magnífica para Gustav e seu passado, sua música, sua arte, por isso torna-se normal tanto para nós quanto para ele a busca incessante da imagem de Tadzio.
Morte em Veneza (Death in Venice, 1971) é o retrato do artista em meio a vida, maior fonte de inspiração e nuances. Visconti faz sua obra com contornos fortes, mas alterando, misturando a maravilha de ser um artista, de criar e também suas obsessões. Qual é, afinal, o motor que mais movimenta um artista senão o de criar e criar mais? A música de representar sentimentos em forma de som, a imagem de criar emoções em figuras, a beleza da vida e seus mistérios de criar a arte. Gustav é, antes de mais nada, um apaixonado pela arte, pela música, que redescobriu a fonte inesgotável de inspiração, simplesmente ao respirar novos ares, de olhar, de observar, de andar, caminhar, de ver e não mais de só tocar sua música, mas ouvir o mundo afora e suas diversas nuances. O que é um artista? Como eles se apaixonam pela arte? O que é arte? O que é vida? Independente de gerar um vício, uma obsessão, Gustav agora é também um apaixonado pela vida.
Ver Morte em Veneza (Death in Venice, 1971) é como ir ao cinema, seu propósito. Em casa ou em qualquer lugar, nos preparamos, vestimos, arrumamos para se encontrar justamente com a tela. Direta ou indiretamente, nos entreguemos a ele por algumas horas, o amamos, amamos a imagem. O nosso contato com a tela, ainda que recíproco e infinito, se limita a visão, ao som, não pode em hipótese alguma ser tocado, ter algum contato físico, ser atingido. É um encontro quase cruel entre amantes que se reencontram, mas que não podem se comunicar, dialogar, tocar ou encostar, um amor impossível, mas real. Mesmo assim, não deixamos de ir ao cinema; a tela é demais para o espectador, resta a nós então, assim como para Gustav, nos deixar levar, amar essa impureza, imperfeição, perfeição, infinito, ilimitado e jovem cinema.
Confesso - e peço que me perdoem - que nunca tive a chance de assistir esse filme e sempre ouvi maravilhas dele. Esse texto excepcional só me fez ficar remoendo de vontade de assistir. Mais ainda. Parabéns!!!
Pois fique sabendo também que sou teu fã, Francisco! Valeuzão Cristian!
Ricardo Parabéns por mais um belo texto. Tem tudo para se tornar num futuro próximo um dos melhores críticos do país, se já não é.
hahah, Quem me dera, Darlan. Muitíssimo obrigado!!