Matty (Barbara Sarafian) é mostrada como uma mulher independente, ou melhor, dependente somente de si, fazendo as suas compras e tomando conta - na maior parte do tempo - sozinha dos filhos. É uma mulher que sempre olhava para o passado, isso demonstrado exatamente na resistência a não se deixar esquecer pelo seu ex-marido Werner (Johan Heldenbergh) - ainda marido, mas que mora com uma aluna mais nova da faculdade - ou pelo menos, na maioria das vezes. Porque é depois de não prestar a atenção em seu retrovisor, que Matty acaba conhecendo a sua nova entrada no romance (em uma apologia ao não olhar “para atrás”, da qual o diretor disse não ser intencional). A dona de casa, com um endereço na Bélgica, mas completamente perdida na vida, irá ir de encontro ao seu próprio encontro, uma jornada para dentro de seus próprios sentimentos.
Moscou, Bélgica (Aanrijding in Moscou) estreou em Cannes (em 2008) na Semana da Crítica, sendo um dos poucos filmes escolhidos em milhares. Levando a sua equipe de filmagem pela primeira vez a cidade francesa símbolo do cinema europeu. Mas calma, não foram só você e eu que pensaram que se tratava de um road movie, ou quem sabe de um filme belga com um estrangeiro da Rússia.. Uma própria tv moscovita procurou os integrantes da equipe de filmagem para saber sobre como Moscou se encaixava na trama. Bem, há um bairro operário chamado Moscou em Bruxelas. Uma espécie de Paris.. Texas. Uma brincadeira e também uma realidade que confundiu muita gente. Entretanto, na verdade o filme e o seu dialeto são filmados em Ledeberg, na cidade de Gante. Pois bem, é um tipo de filme que caminha sobre o underground, na qual me refiro ao cinema mais subsolo feito na Europa ao cinema mais clichê, de encontros e desencontros e com muitos dilemas familiares. Isso não torna a película pior ou melhor, mas é o seu encanto. Ainda mais por ser um filme de uma região específica na Bélgica, onde nem o pessoal de Cannes conhecia todos os atores presentes em tela - possivelmente nenhum, aumentando o grau de autenticidade dos ocorridos na tela.
Trata-se de uma estória pé no chão, que busca contar o desenvolvimento de um acontecimento único que afetará várias vidas, como a teoria do caos, em que o simples acontecimento, um acidente no caso, gera uma reação em cadeia. De forma leve aqui, é claro, alternando a vida de uma mulher e suas filahs. É um filme de atores, com uma reação em cadeia e um cenário urbano comum, não há enfeites além disso, e acabou conquistando um grupo de fãs na época, tanto na Europa do Norte quanto nos Estados Unidos. Não possui a profundidade de um O Medo Devora A Alma (I Angst Essen Seele Auf, 1974) de Fassbinder, mas possui a doçura e as dificuldades de uma mulher com 40 anos que se apaixona por um homem muito mais jovem - ele não é negro, nem estrangeiro, mas é rude e com um passado complexo. É quase como uma forma mais contemporânea, adotada aos estilos do indie e com uma leveza feita para atrair um público mais geral.
Com isso quero dizer que não há uma profundidade dramática em Moscou, Bélgica que vá além do desenvolvimento dos seus personagens, que coloque na bagagem questões que ponderem sobre a Bélgica do século XXI, por exemplo. Embora isso não dispense uma linda reflexão sobre o tipo de emprego que se possui e o que sonhos buscamos com ele. É o caso de Werner, o ex-marido, e Johnny (Jurgen Delnaet), o então caminhoneiro que Matty acidentalmente acaba conhecendo. Werner é bem sucedido financeiramente e trabalha em uma universidade, mas nunca sabe o que quer, buscando a aventura de uma jovem mulher, ao mesmo tempo em que quer a certeza de uma mulher mais madura, Matty, no caso. Em uma maneira bastante “descolada” de reverter alguns clichês, pois é Johnny, apesar de tudo, que passa a Matty a esperança de uma vida digna ao lado de alguém. Werner, por exemplo, considera o caminhoneiro absolutamente rude e grosseiro perto dos conhecimentos históricos e artísticos que possui, mas na hora de uma discussão na mesa, não acaba sendo tão delicado quanto aparenta ser. Nesse sentido, Moscou, Bélgica utiliza-se de clichês do romance para desconstruí-los.
O filme ainda explora algumas outras tramas, como a possível homossexualidade de uma das filhas de Matty e a própria solidão desta, e também os meios com que a volatilidade da sociedade faz com que os romances aconteçam, ou mesmo (não) acabem. Embora nenhuma dessas análises se exceda além do “ok, aqui estamos em um filme leve, mais ou menos colorido e de verão”. Mas há algo de especial nos dilemas da mulher quarentona dos subúrbios belgas que fascinou a Europa por onde o filme passou na época: a representação. Matty não tem tempo de ir aos salões de beleza, de ficar horas na frente do espelho e de frequentar lojas caras para estufar o seu roupeiro. Precisa cuidar das filhas e ainda lidar com as contas da casa. Aparece nua em seu banho como qualquer pessoa que termina os seus afazeres do dia e tem um momento para repensar tudo.
É dessa vida dita ordinária, que de ordinária não tem nada, pois é uma vida de lutas diárias, que o diretor van Rompaey faz a sua construção de Matty e Johnny, o grosseirão sem família que decide amar uma e a dona de uma família que decide amar um solteirão sem uma. As belezas através do que é comum e sutil, sem grandes reflexões, é verdade, mas sem o desconhecimento daquilo que fala, que pode ser o pior para este tipo de abordagem, transformando boas possibilidades de filmes em lugares comuns e sensibilidade grosseira. Rompaey filma aquilo que achou justo inserir entre o passado e o presente (Da Vinci, a família tradicional e os tempos líquidos em confronto), entregando-nos um Paris, Texas mais contido, mas não menos belo. Pois é no cotidiano que encontramos as mais improváveis lições e peripécias da vida.
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