“It’s not easy facin’ up
When your whole world is black”
(Paint It Black, Rolling Stones)
“Sim, eu estou num mundo atolado em merda. Mas, estou vivo e não estou com medo.”
(Soldado Joker, personagem de Matthew Modine em Nascido Para Matar)
Filmes de guerra sempre retratam um mundo atolado em merda, recheado de coisas absurdas que se tornam normais e até louváveis em estado de batalha. A guerra é a própria desumanização do que antes era humano. É a transformação do homem em máquina de matar outros seres humanos em prol de algum objetivo que, se analisado bem, não tem sentido algum. Nascido Para Matar (Full Metal Jacket, 1987) enfoca a Guerra do Vietnã para mostrar toda essa desumanização por trás não só desse combate, mas de todos que já aconteceram e todos os que acontecerão e que atolaram e atolarão, ainda mais, o mundo na merda.
Este líbero antibelicista em formato de filme (mais um na filmografia de Kubrick) é dividido em duas partes bastante distintas, mas que se completam entre si. A primeira delas narra o cotidiano do treinamento de um grupo de soldados comandados pelo sargento Hartman (R. Lee Ermey), que estão prestes a serem mandados para o Vietnã pelo exército americano. O intuito do treinamento, o qual é mostrado com proposital exagero crítico, é realizar uma desconstrução humana em massa, no sentido mais puro da expressão. No treinamento, os soldados têm sua humanidade diminuída por completo para dar lugar a um instinto assassino, que os deixará prontos para lutar na despropositada guerra. Saíram de lá tão despropositados como seres humanos quanto o próprio combate.
Por consequência, essa primeira parte do filme nos faz lembrar o quanto o meio em que se vive (o tal “black world” da música dos Rolling Stones, ou o mundo atolado em merda do personagem Joker) é crucial para determinar o tipo de moral que é escolhida como sendo a certa. Vemos, claramente, isso em Hartman. A moral religiosa-cristã que o guia é cheia de modificações para se adaptar ao meio em que o sargento está inserido. Em outras palavras, o sargento Hartman é cristão, e um dos mandamentos cristãos diz para não matar, mas basta ouvir um dos discursos do sargento para chegar à conclusão de que não é bem isso que ele segue.
A segunda parte do filme já mostra o confronto em si e, por isso, é aqui que está a parte mais crítica com relação às guerras. Sob a narração do soldado Joker (Matthew Modine), que estava presente no treinamento supracitado e que se tornou correspondente de guerra, vemos o que acontece durante uma ofensiva de combate. O interessante é que, para o roteiro do filme, os aspectos geopolíticos da Guerra do Vietnã pouco importam. Nascido para Matar poderia retratar qualquer outro conflito, pois, nesse sentido, é muito mais um estudo da condição psicológica dos soldados, do que um relato histórico fidedigno. A questão central é: por que aqueles soldados estão lá? Quaisquer que sejam os motivos de ordem ideológica dos EUA, estes são, meramente, motivos dos EUA e não dos soldados. Quando são perguntados sobre o porquê daquela guerra, eles respondem que estão lá simplesmente para matar vietcongues, o que ilustra a consequência do treinamento para se tornarem soldados.
A crítica que o filme faz, por outro lado, atinge seu auge quando o soldado Joker aparece com seu capacete, no qual está escrito “Born to kill” (Nascido para matar) e, ao lado, há um broche de símbolo da paz. Segundo o próprio soldado, a aparente contradição simboliza a dualidade do homem. Aos soldados foi imputado a marteladas o macabro lema “Born to kill” durante o treinamento desumanizante pelo qual eles passaram (lembrem-se da fala do sargento Hartman, “A vossa espingarda é apenas um instrumento de matar. O coração endurecido é que mata. Se não tiverem um instinto de matar decidido e forte, hesitarão no momento da verdade. Não matarão. Serão fuzileiros mortos.”), mas, eles são, antes, homens e, por isso, muito mais complexos do que simples máquinas de matar. É isso que Joker mostra, seja nesse momento de dubiedade ideológica born-to-kill/símbolo-da-paz, ou mais a frente no filme, quando decide entre matar ou não matar e hesita, diferente do que lhe foi imposto.
Todo o filme é construído sob um alicerce de crítica às guerras, o que é louvável, haja vista não há guerra que não seja despropositada e desumanizante, entretanto, dentro da filmografia de Kubrick, Nascido Para Matar fica atrás de outras obras que também seguem a doutrina antibelicista, como Dr. Fantástico (Dr. Strangelove or: How I learned to Stop Worrying and Love the Bomb, 1964), que utiliza melhor da ironia e do exagero como recursos para mostrar o despropósito das guerras. Além do mais, há um desequilíbrio no que diz respeito à qualidade das primeira e segunda partes de Nascido Para Matar. É consenso entre a maioria dos espectadores do filme – inclusive este que vos fala – que os primeiros trinta ou quarenta minutos são arrebatadores e geram cenas incríveis e memoráveis enquanto o resto do filme segue sem o mesmo entusiasmo, mas nunca desinteressante ou ruim. É normal ouvir que a primeira parte ainda continuava na cabeça enquanto o resto da produção ia pela tela. Mesmo assim, sente-se a presença do genial Kubrick, em menor ou maior quantidade, durante todo o filme, que não deixa de ser um bom trabalho de um excelente diretor.
Comentários (0)
Faça login para comentar.
Responder Comentário