Obs: como o filme foi planejado por Lars Von Trier como uma única obra, acho injusto avaliar cada volume como um filme individual, já que tematicamente, a produção só se completa após as duas partes assistidas. Sendo assim, esse texto aborda os dois filmes, leia com a consciência de que haverá spoilers dos dois volumes.
"Esqueça o amor."
Não são poucos os que afirmam que Lars Von Trier é o cineasta mais marketeiro do cinema atual e é difícil não concordar com essa denominação, afinal, seja se autodeclarando o “maior diretor do mundo”, fazendo piada com o nazismo ou divulgando seu próximo filme em cima de cenas de sexo explicito, Trier sempre consegue aquilo que quer: chamar atenção para o seu filme e, no processo, para si mesmo. Assim, ainda que me divida na opinião sobre seu cinema, é preciso dizer que todo o “blá, blá, blá” em torno de sua mais nova produção, Ninfomaníaca, me despertou o interesse de conferir o filme.
Assim, as primeiras coisas a se fazer ao escrever sobre Ninfomaníaca: Volume 1 e Ninfomaníaca: Volume 2 é colocar uma pedra no assunto mais óbvio: sim, o sexo é tratado de forma explícita pelo diretor – ainda que bem menos do que o alardeado, provavelmente, em função dos cortes sofridos pelo filme a mando do estúdio -, mas não, o filme não se concentra nele, sendo apenas um elemento – imprescindível, diga-se – da história que Von Trier quer contar. Que história é essa? A vida de Joe, uma mulher que certo dia é encontrada ferida e inconsciente em uma ruela e começa a narrar sua história ao homem que a encontra, Seligman. Uma vida que da infância até a idade adulta é simbolizada pela busca constante pelo sexo, levando a própria mulher a se declarar uma “ninfomaníaca” e, mais que isso, “uma má pessoa”.
Ao longo das quase quatro horas somadas pelos dois volumes, acompanharemos através de capítulos – uma abordagem adotada pelo diretor em boa parte de sua filmografia – acompanhamos a descoberta sexual de Joe ainda no inicio da infância - “Eu descobri minha boceta aos dois anos de idade.”-; o primeiro orgasmo, vindo involuntariamente, aos 12 anos de idade; os diversos parceiros sexuais ao longo de sua vida; a tentativa de estabelecer família ao encontrar o homem que surge como amor de sua vida; a perda da libido; e mesmo a busca incessante pelo volta do prazer através do sexo extraconjugal e do sadomasoquismo. Tudo isso entrecortado com intervenções do interlocutor de Joe e da própria mulher, que buscam através de metáforas e conhecimentos específicos sobre música, filosofia, religião e literatura, encontrar um significado na jornada de vida da protagonista, ao passo que se estabelece uma clara relação de pontos de vistas antagônicos, mas complementares entre si.
Dito isso, não deixa de ser interessante notar como a abordagem narrativa de Trier nessa produção é a que mais se distancia em toda sua carreira do Dogma 95 difundido pelo diretor e seu parceiro, Thomas Vintenberg, em obras como Os Idiotas e Festa de Familia. Nunca se vira Trier fazer tão pouco uso da câmera na mão como aqui. Mas não é só isso, por diversos momentos a estilização do longa e algumas decisões pontuais do diretor acabam por afastar Ninfomaníaca de sua obra ao apostar em saídas poucos convencionais, como ao trazer Joe narrando histórias sobre seus três amantes mais marcantes, quando a livre associação dos personagens com a polifonia leva o cineasta a dividir a tela em três e representar cada relação como um instrumento utilizado naquele conceito.
Mas, ainda que seja interessante acompanhar os personagens estabelecendo relações entre suas trajetórias e os mais diversos assuntos e conceitos teóricos, rendendo momentos realmente fascinantes - como a personagem principal percebendo que ficou sem opções de objetos no quarto para associar com o nome do próximo capítulo de sua história -, em diversos momentos a conversa entre os personagens parece beirar a masturbação intelectual por parte de Trier e seu roteiro, o que assume um – proposital? – tom paradoxal, já que algumas das digressões não movem a narrativa e mal se encaixam nela, mas ainda assim permanecem interessantes – o debate sobre o politicamente correto, um termo caro ao cineasta, como o banimento de Cannes pela piada de Hitler nos faz lembrar -, enquanto outras apenas incomodam por travar a narração da história de Joe e não conseguir estabelecer o interesse do espectador – uma passagem em especial abandona Joe por alguns minutos e foca em uma história de Seligman. E se Trier é notadamente egocêntrico e narcisista, não deixa de surpreender que a possível cena mais auto referencial que o cineasta já filmou – um nenê que levanta do berço e sai andando até a janela - não apenas se encaixe como uma luva aqui, como também funcione pela segunda vez em um de seus filmes, se dando ao luxo de alterar drasticamente seu final como uma forma de comentar a ideia de culpa feminina representada na ocasião em Anticristo, ao trazer a parte masculina do casal reparando o erro negligente cometido pela mulher.
Mas se isto poderia servir como mais uma confirmação para os que defendem que o cineasta é misógina e sente ódio das mulheres, retratando-as sempre em situações de sofrimento – seu desejo - e/ou como culpadas por algum mal – sua opinião -, algo também agravado pela opinião de Joe acerca de si mesma como uma má pessoa, logo essa impressão desaparece e revela ser Ninfomaníaca um filme quase essencialmente feminista, trazendo o diretor defendendo a liberdade sexual feminina através da aceitação da sexualidade da protagonista ao se rebelar em um grupo que deseja a extinção da ninfomania – ou vicio em sexo, como preferem chamar – da sociedade. E mesmo o preconceito sofrido por uma mulher independente sexualmente (seja ninfomaníaca ou apenas amante do sexo) é abordado pelo diretor em seu final que ainda traz seu característico pessimismo acerca da humanidade, retratando como o simples ato de recusar sexo com alguém parece uma afronta vindo de uma mulher que ”já transou com milhares de homens” – e o fato dessa tentativa de estupro vir do personagem menos esperado, que tanto se afirmou como assexuado, não deixa de mais uma vez representar a ironia com que Trier encara o ato de confiar no ser humano.
Conseguindo ainda levantar um paralelo interessante entre a adicção sexual (ninfomania nas mulheres e satiríase nos homens) e a pedofilia não consumada de um personagem, Ninfomaníaca – e consequentemente, Trier - encara ambos os transtornos psicológicos como semelhantes ao forçar o isolamento social de suas “vitimas”, resultando na privação da felicidade em prol de uma busca constante por um estado de satisfação ou tentativa de impedir essa satisfação. E se essa associação surge como algo naturalmente complexo e polemico, o próprio Trier reconhece isso ao trazer Seligan, sempre aberto a ouvir sem impor julgamentos, finalmente julgando um ponto da história de Joe quando a personagem faz essa associação.
Dito isso, não deixa de ser uma pena que momentos de riqueza temática como esse se percam em outros que mereciam ter ficado na sala de montagem, como o pavoroso capítulo dedicado a Ms. H., que na busca por despertar o riso nervoso do espectador, apenas se revela o momento mais aborrecido e exagerado do(s) longa(s). Não que isso seja exclusividade desse momento, já que o terceiro ato do segundo filme, focado no trabalho de “agente de cobrança” de Joe e da jovem P. e o relacionamento que se estabelece entre ambas, se revela forçado e apressado, iniciando e findando de maneira brusca e excessivamente mal desenvolvida – algo que também vitima as boas cenas em que Joe busca uma fuga/sentido no sadomasoquismo de K., um personagem aborrecido e que jamais parece algo além de um boneco manipulado pelo roteiro.
Vitimado ainda por um problema comum em filmes divididos em capítulos, Ninfomaníaca acaba por se dividir em capítulos que isoladamente revelam uma alternância de qualidade que pode variar de espectador para espectador. Uma alternância que, excluída a exagerada participação de Uma Thurman como a Ms. H. do capítulo já mencionado, não se mostra entre os nomes do elenco da produção, já que os atores e atrizes surgem sempre em participações que se alternam entre o bom e o ótimo, com destaque para Stellan Skarsgård, como Seligman; a parceira habitual dos últimos filmes de Trier, Charlotte Gainsbourg, que mais uma vez se entrega totalmente a sua personagem (a versão adulta de Joe) -; Shia LaBeouf que transita entre o carisma e segurança de Jerôme, o primeiro e único amor da vida de Joe, logo substituindo essa característica por uma nítida magoa por não satisfazer mais a esposa; e se Willem Dafoe pouco pode fazer no pouco tempo de tela, é mesmo a jovem e bela Stacy Martin, estreando no cinema, que rouba o filme para si com uma atuação arrebatadora e corajosa como a jovem Joe, retratando a fase mais complicada da personagem, em sua luta para descobrir a si mesma e ter “seus buracos preenchidos”, uma metáfora verbal óbvia, mas eficiente, sobre sua própria condição psicológica.
Relativamente prejudicado se assistido como filmes separados, já que, apesar de funcionarem individualmente – ainda que trôpegos -, Ninfomaníaca: Volume 1 e Ninfomaníaca: Volume 2 só se tornam um filme tematicamente completo como uma única produção, o filme de Trier se revela uma síntese do descaso dos produtores com o seu público, já que não se importaram de além de prejudicar a experiência cinematográfica do espectador, ainda cobraram um ingresso a mais para isso. E o fato de as cenas de sexo do filme causarem maior barulho do que essa atitude reprovável dos engravatados, é um triste sinal de que nem sempre damos a atenção ao que merece.
vlw
Ué, pelo que?
Tá safadão hein, Pedroca? Assistindo Ninfomaníaca..
Isso que tu não leu meu texto pra "perdi meu selinho" (baita filme, aliás)