"Nasci quando ela me beijou, morri quando ela me deixou, e vivi algumas semanas enquanto ela me amou."
Se o cinema é Nicholas Ray, como disse Godard, eu não posso afirmar. Mas posso afirmar que não existe cinema igual ao que Ray exerce em No Silêncio da Noite, uma das coisas mais difíceis de se admirar nos mais de cem anos da sétima arte. Nunca um cineasta foi tão fundo dentro de um personagem tão complexo e tão trágico quanto o Dixon Steele de Humphrey Bogart (bom, talvez James Gray em Amantes). Nunca o cinema desceu tão quadrado goela abaixo como ao final dessa obra-prima que tanto quanto vontade de ser revista tão logo acaba, desperta medo de ser revisitada, por que não queremos sentir aquele gosto amargo de seu final de novo, não queremos mais uma vez ver Dix morrer ainda em vida sem nada poder fazer e, pior ainda, sendo cúmplice de sua morte.
"É difícil adivinhar o que ele sente, nós nunca o entendemos.", diz um personagem em dado momento de No Silêncio da Noite, se referindo ao protagonista. E ele não é o único, todos que orbitam Dix, inclusive Laurel Gray (Gloria Grahame), seu amor, parecem não entendê-lo. Tanto que quando uma moça (Martha Stewart) aparece morta depois de deixar a casa de Dix e ele se torna o maior suspeito do assassinato, todos parecem suspeitar dele. Inclusive nós, espectadores, já que Ray deixa bem claro o quão difícil é o gênio do personagem de Bogart, seja na briga no bar; na maneira como faz o detetive Brub (Frank Lovejoy) e sua esposa (Jeff Donnell) encenarem como Mildred (a personagem de Stewart) deve ter sido morta; ou na maneira descontrolada que ataca um motorista na estrada, para espanto de Laurel. Aí quando a moça decide fugir, temendo por sua vida, já que parece certa que Dix é, sim, culpado pela morte de Mildred, nos tornamos cúmplices, torcemos por seu sucesso, traímos o protagonista ao vermos o sujeito feliz comemorando um noivado que jamais se consumará.
Ninguém entende Dixon por que nunca alguém foi tão transparente numa tela de cinema. E sinceridade demais é um motor potente para a desconfiança. Dixon é um livro aberto, é quase uma criança no corpo de um adulto. Se entrega a todo sentimento, todo impulso, como se não houvesse amanhã. Quando sua raiva toma conta de seu corpo, espanca um sujeito na beira da estrada e só para quando Laurel grita que irá matá-lo. Quanto se encontra com a garota na cozinha e diz que "qualquer um que os veja daquele jeito saberia que estão apaixonados", abre seu coração de uma forma tão vulnerável, comovente, que nos sentimos mal por saber o que planeja Laurel, por saber que aquela paixão talvez até seja correspondida, mas não mais será possível naquele universo. Por que Dix pode não ser um grande sujeito - seus ataques de ciúmes são cruéis e covardes, por exemplo -, mas sabemos que ninguém merece um coração partido.
Daí que No Silêncio da Noite é um noir único dentre o gênero. O protagonista durão nem é tão durão. O crime a ser resolvido nem importa tanto assim. A femme fatale nada tem de fatal. Claro que Ray, diretor sensacional que é, só nos faz perceber isso tudo nos últimos momentos do filme. Só quando Bogart aparece cabisbaixo, sendo visto de costas enquanto deixa Laurel e o "THE END" surge na tela sobrepondo o protagonista, que Ray nos deixa claro que aquilo tudo era sobre o ciclo de vida do amor, do nascimento à morte, do sentimento e das pessoas envolvidas, que só vivem verdadeiramente enquanto dura o sentimento.
Existe ali no meio dezenas de tiradas metalinguisticas dignas de aplausos (Dix é roteirista de cinema) - "Você e Lochner deveriam ir mais ao cinema. Nós resolvemos os assassinatos em menos de duas horas." -; uma das fotografias em preto e branco mais fascinantes que já pudemos ver - repare como Dixon está sempre mais carregado de sombras que Laurel, enfatizando a dúvida que paira sobre ele -; e as atuações antológicas de Grahame e Bogart, esse último interpretando um amálgama de si mesmo e de Nicholas Ray, em uma das maiores - maior? - atuações da história, onde cada olhar e gesto parece o último, sempre dotado de um sentimento que não pode ser contido pelo corpo e escapa para a tela. E há aquela postura no frame final, onde parece que um mundo inteiro desabou nos ombros de Bogart, poucas vezes vi um corpo de costas transmitir tantos sentimentos como ali. Coisa de gente graúda mesmo.
Por que um mundo realmente desaba quando você tem o coração partido, qualquer um sabe (sente) disso. E por isso que No Silêncio da Noite dói tanto, por que joga na nossa cara que às vezes amor não é o bastante, tem muita merda que pode impedir um romance de dar certo, mesmo um mal entendido. E mesmo esse coração partido é melhor que nada, claro. Dix e Laurel sabem disso. Melhor morrer do que nunca nem ao menos nascer. Se Dix queria "um dia fazer algo bom", como diz em dado momento, numa frase que se refere ao cinema, mas soa bem mais ambígua que isso, viver algumas semanas enquanto teve seu amor retribuído foi alcançar seu objetivo.
"Ontem isto teria significado muito para nós. Hoje já não mais importa. Não importa absolutamente nada.
Vivi umas semanas enquanto me amou.
Adeus, Dix."
BELÍSSIMO TEXTO PEPE, NÃO LÍ MAS TÁ DE PARABÉNS
Chico *----*
(2) no Monchito
Lipe nunca lê meus textos, só zoa 😢