Por entre cenas e mais cenas mitológicas, afinal O Abutre é um filme de mitos e criações reais, uma mesma expressão parece sempre estar presente: a de Louis Bloom (Jake Gyllenhaal) fascinado e ao mesmo tempo temeroso enquanto filma e posteriormente quando monta e arquiva suas imagens. Louis Bloom, apesar de ser mais um cara perdido em Los Angeles, é a personificação do novo psicopata que assola Hollywood, não mais dos maníacos e suas psicoses específicas, agora trata-se de um animal criado a partir do próprio sistema. Louis Bloom é qualquer um.
O que primeiramente parece interessar Dan Gilroy é a exploração dessa criatura. Bloom não começa com câmera na mão, emprego e carteira assinada, é antes de mais nada um cara qualquer que tenta ganhar a vida. Ah, e quantos caras desse tipo existem: Gilroy capta os passos do animal, como se fosse um daqueles documentários do National Geographic, por dentro da noite metropolitana (seu hábitat natural), observando como funciona a mente de um homem que herdou seus conhecimentos e neuroses a partir da internet. Bloom é o mito dos novos tempos, o alienado que se cria através de nenhum contato humano, apenas do contato com o virtual. E esse “sistema” que Gilroy insiste em expor nasce, em um primeiro momento daí, não há saídas, não há oportunidades e o único jeito de sobreviver na selva então, é aproveitar o que já está morto.
Contudo, o comportamento da personagem de Jake Gyllenhaal é, como ele todo, ácido. Gilroy provoca, a partir da obsessão, a ética de Bloom e o perfeccionismo, os mesmos que se exigem em torno do tal “mercado de trabalho” e que logicamente exigiram outra vez dele mesmo. O primeiro contato, visualização e consequentemente fascinação de Bloom sobre o trabalho de filmar desgraças, é sem volta. Se antes, encontrávamos alguém na selva de pedras tentando apenas sobreviver e que acha nessa ação alguma maneira de se sustentar, vemos posteriormente uma figura próxima a Mark Lewis (Tortura do Medo [Peeping Tom, 1960]) e a James Ballard (Crash – Estranhos Prazeres [Crash, 1996]), que acopla o instrumento ao seu corpo e que mantém uma relação fúnebre de prazer com o ato.
Bloom, a partir do momento em que se relaciona com a imagem, quebra a importância de se ganhar dinheiro, de viver, pelo puro prazer de abusar, literalmente, com sua câmera, enquadrar mortos e corpos, aumentar o zoom em pessoas entre a vida e a morte. O que mais importa para Gilroy, a partir da criação desse mito, desse cowboy que tem como arma a câmera e como cavalo um imponente carro vermelho, é explorar a nova ameaça que nasce justo da “realidade” das televisões, rádio e internet, do entretenimento primitivo que nada mais se adequa senão daquela diversão sádica, porém tradicional de ver enforcamentos em praça pública. O jornalismo na visão de Gilroy, não serve mais para informar, mas para entreter, com direito a luzes, ação e todos os bastidores de um show business e a concorrência é composta pela busca de artifícios que complementem o espetáculo: a proximidade com o cadáver (a grande estrela, que de preferência, seja alguém rico), entrevistas e ângulos que captem de forma coesa, uma sequência de ação.
O abutre, ainda assim, é teimoso, quer chegar mesmo perto da carne viva. Bloom jamais sofre pressão quando perto da polícia, ao contrário, sente mais estímulo. Assim como John Gillinger () abusava de sua figura mitológica para observar de perto a polícia, Bloom também abusa de sua importância, afinal, ele realmente é um importante homem no mecanismo do sistema, sem ele (o bastidor, afinal) a outra parte não pode existir, não existe show, não existe televisão, não existe dinheiro. O abutre, apesar de ser um animal solitário, sente a ausência de companhia. Porém, o cheiro da carne viva alucina Bloom, que ainda quer experimentar o sabor dela nesse estado. Bloom pode até ser um abutre, mas é parte fundamental da “cadeia alimentar” televisiva: o mito existe.
Comentários (0)
Faça login para comentar.
Responder Comentário