“Quando o Senhor passar para ferir o Egito, vendo o sangue sobre a verga e sobre as duas ombreiras da porta, passará adiante e não permitirá ao destruidor entrar em vossas casas para ferir. Observareis esse costume como uma instituição perpétua para vós e vossos filhos.” Êxodo 12:23,24
Desde que o mundo é mundo que religião e política se misturam. As primeiras civilizações da história o ícone religioso máximo era uma espécime de semi-deus (Ex.: Egito, Mesopotâmia, Roma). Com o tempo, a Igreja, em seu sentido mais genérico, se separou do Estado. Entretanto, estes nunca deixaram de andar de mãos dadas. Isso porque a religião, por tratar de assuntos intangíveis, possui um poder de anestesiar o povo muito mais eficaz do que qualquer outro tipo de ideologia. Muito maior que o medo da prisão, do exílio ou da pena de morte é o medo de ir ao inferno. Essa foi a função que a Igreja, em diversos contextos, desempenhou: a de legitimar, de maneira inquestionável, o poder estatal, seja quando o bispo coroa um rei medieval, ou quando um sacerdote fica em lugar de destaque na cerimônia de posse de um governante. Essa complicada relação de poderes é o ponto de partida de “O Anjo Exterminador”, de Luis Buñuel.
Antes de adentrar do filme em si, vale a pena falar um pouco da pessoa de Buñuel. Nascido na Espanha em 1900, Buñuel foi um dos principais nomes da chamada “Generación del 27”, principal movimento do surrealismo nas artes. O fato de já ter dirigido o famoso filme surralista chamado “Um Cão Andaluz” ao lado de seu conterrâneo Salvador Dalí, aquele dos bigodes, já demonstra a sua sensinilidade artística. Esse movimento foi esmagado com a vitória do fascista Francisco Franco na Guerra Civil espanhola. Muitos artista dessa geração foram perseguidos e Buñuel fugiu da Espanha, indo morar dos Estados Unidos e, depois, no México. Tudo isso criou um forte sentimento contra Igreja Católica que, na sua visão, colaborou com a ascenção do governo franquista e tornou-se cúmplice deste.
O ponto de partida do filme é simples: um grupo de aristocratas vai jantar e passar a noite em uma luxuosa casa. Porém, na manhã seguinte, eles não conseguem sair dos cômodos onde passaram a noite. Não por um impedimento físico, simplesmente os esnobes ricos não conseguem dar um passo além daquelas salas. E a partir daí as coisas entre eles começam a ficar complicadas.
Logo de cara são apresentados os dois grupos de personagens, os ricos e os pobres, naturalmente, sendo que estes são os responsáveis por servir o jantar àqueles. Porém, para não criar um ingênuo e maniqueísta argumento de luta de classes, Buñuel subdivide o grupos dos pobres em dois subgrupos. Os copeiros, que de fato mantém mais contato com os ricos, e os demais. É importante notar algumas coisas aqui. Os copeiros, diferentemente dos outros trabalhadores, usam roupas finas e se comportam seguindo as rígidas regras de etiqueta da aristocracia. E não só isso, como também acabam fiscalizando e, de certa forma, oprimindo os seus colegas trabalhadores. Na primeira cena, um dos copeiros, vestindo um smoking, repreende um trabalhador que não quer ficar para o jantar. Aqui, Buñuel faz uma analogia àqueles que, mesmo sendo oprimidos, querem a todo custo se parecer com os opressores, querendo fugir de qualquer identificação com a classe baixa, na qual de fato pertence. E isso fica claro em uma cena: no momento do jantar, um dos copeiros acaba tropeçando e caindo no chão. Nesse momento, os burgueses começam a rir da sua desgraça. E o que o copeiro faz quando se levanta, todo sujo de comida? Se curva perante o seu amo, que ri da sua cara.
Mas ainda um pouco antes do jantar, ocorre uma cena interessante, também sobre a relação entre patrão e empregado. O anfitrião do jantar, ao ver que o mordomo não está lá para recebê-lo com os seus convidados, não sabe o que fazer. Ou seja, sem os trabalhadores, os ricos são totalmente impotentes. Curioso que quando um dos esnobes copeiros vê que Lucas, o mordomo que deveria receber os convidados, fugiu, ele diz que “existem muitos Lucas no mundo”. Porém houve toda aquela confusão quando o patrão chegou e não o viu. Ou seja, há uma ilusão muito equivocada de que o trabalhador não é uma peça relevante.
Em um certo momento, a anfitriã começa a tocar uma bela canção do piano. Os outros convidados ficam ao seu redor, aprecindo-a, quando uma elegante mulher abre a sua bolsa a procura de um lenço, puxando em meio à bizarros pés de galinha que estava ali. O qque aparenta ser uma simples cena surrealista non-sense guarda um significado pesado. Uma mulher bela, elegante e sofisticada, guardanda escondido algo tão repulsivo e nojento. Essa é a mensagem do filme, quebrar com os encantos que a vida burguesa apresenta. E isso é escancarado quando os burgueses ficam “presos” na sala. Ali o bicho começa a pegar entre eles. O que no jantar eram apenas cochichos ao pé do ouvido de transforma em barracos homéricos, onde todas as máscaras caem, e os pés de galinha podres e fedorentos que cada um guarda dentro de si ficam expostos. Aliás, as analogias não são aleatórias. Naquela mansão, há um urso, preso em uma coleira. Esse urso pode muito bem simbolizar o comunismo revolucionário, oriundo da Rússia soviética, que a classe alta acredita estar sob controle em sua coleira curta.
Mas o melhor fica para o final. Finalmente, os aristocratas conseguem sair da maldita casa. E de lá, vão para a Igreja. Quando a missa termina, eles, novamente, não conseguem sair do templo. Aliás não só eles como também os clérigos. Então, em uma forte analogia surrealista com o texto bíblico que abre essa resenha, um rebanho de cordeiros aparece entrando na Igreja. Então, mostra um grupo de manifestantes do lado de fora sendo reprimido violentamente pela polícia. E, enquanto isso, os ricos e os clérigos assistem ao seu anjo exterminador massacrar os pobres.
Belo texto para essa obra prima do cinema.