"Pinheiros:
Pela manhã
Os pinheiros são da cor do cobre.
Assim os vi
Meio século atrás.
Antes de duas guerras mundiais
Com olhos jovens.
(Tannen, um poema de Bertolt Brecht)"
Neste curto poema (que não está presente no filme, diga-se de passagem) o alemão Bertolt Brecht (1898 - 1956) escrevia sobre os pinheiros, da cor do cobre pela manhã, depois de duas guerras mundiais, tais pinheiros permaneciam os mesmos, os que não foram destruídos pelas bombas estavam lá, em pé, iguais. Não reclamaram durante todo esse tempo, uma palavra que fosse não foi dita, uma misera lágrima não foi derramada, nada mudou para eles. A pergunta é, e o povo, essa massa tão heterogênea, continuava o mesmo?
Durante os 120 minutos de Die Ehe der Maria Braun (O Casamento de Maria Braun, 1979), em um raro título brasileiro acertado, em meio aos destroços de construções passadas, vemos claramente a Alemanha se reerguendo paralelamente à evolução dos personagens. A trajetória traçada é de 1946 até 4 de julho de 1954. A guerra era imperdoável, e diferente do que lemos em alguns livros de história ou em alguns jornais mentirosos, só os derrotados (mortos) eram perdoados. A morte, ainda que temida por todos, trazia dor aos familiares e conhecidos, trazia dor também ao país em um grande conjunto, mas aliviava todos os problemas do próprio morto. Que na morte era libertado de todos os problemas: mulheres para amar, crianças para criar e cuidar, família para sustentar, emprego, alimentação e moradia, toda essa reconstrução era libertada dos mortos. Como mostrado no filme, havia centenas de coisas pior do que morrer em campo de batalha (embora a guerra em si nunca seja mostrada), como ficar aleijado de uma perna ou de um braço, ou pior, ficar aleijado da perna e de um braço do mesmo lado. Era melhor morrer do que voltar sem pedaços e ter que sofrer com as consequências, o país precisava de homens fortes e inteiros, com o corpo e o espírito no lugar, precisava para sua reconstrução. Embora a própria Alemanha fosse a culpada de ter exterminado esses homens. Ora, eles morriam pela Alemanha e quando voltavam, precisavam fazer algo pior do que isso, viver pela Alemanha! Qual era a recompensa de homens que perdiam os braços? As pernas? A dignidade? Nada, eram inúteis, pois aleijados são isso para um país que precisa se reconstruir. O patriotismo mostra-se tão voraz quanto qualquer Estado genocida.
E o filme, em si, tenta mostrar a guerra pessoal de cada um, e não a Guerra.
Fassbinder nasceu no final da Segunda Guerra Mundial, em maio de 1945, ele acreditava que tudo o que fazemos (e também seus próprios filmes) são resultados de experiências vividas em nossas infâncias e nas fases que vêm a seguir, não é à toa que ele soube como poucos passar em frames o ambiente familiar e social daquela época no país, tornando-se um grande ícone cultural, a honra mais alta que um ser humano pode ter, eu acredito.
Maria Braun (a belíssima Hanna Schygulla) é uma mulher sonhadora, sonha que seu marido Hermann Braun (Klaus Löwitsch) volte da guerra, é a única coisa que as mulheres em tempos assim faziam, sentavam e esperavam. Esperavam que seus maridos voltassem, como se o único sentido da vida fosse esse, e como se a mesma dependesse exclusivamente disso. Maria se empenha nisso mais do que qualquer outra, pendurara um cartaz nas costas com o nome do marido, esse que foi realmente seu marido por menos que dois dias. Ao ponto das outras mulheres da estação estranharem tamanho empenho e dedicação à volta de Hermann. Em uma cena do filme, Maria pergunta a uma viúva o porquê dela não ter se casado novamente, a pergunta é totalmente ignorada.
O cigarro aqui, mais do que nunca, é um símbolo de liberdade e de escape por homens e mulheres, em uma cena famosa, um homem joga uma bituca de cigarro fora, no mesmo momento vários outros homens se atiram desesperados em uma busca de uma mísera tragada, tudo isso é observado pelos olhos verdes brilhantes de Maria. Conforme o filme for se aproximando do seu final, também reparamos que Maria (que até então não fumara) usa o cigarro como uma forma de fugir a sua própria vida, que talvez nem ela entenda como chegara ao ponto em que estava.
A Segunda Guerra - explorada a exaustão no cinema, principalmente no norte-americano e no europeu - poucas vezes foi vista do lado dos "vilões", ou seja, a própria Maria Braun e seus compatriotas. Fassbinder nos mostra, com sua mise-en-scène analisada milimetricamente, o que uma mulher precisava fazer para sobreviver em um ambiente hostil como aquele. Se no início do filme conhecemos uma mulher determinada em encontrar seu marido e de certa forma sensível. Com o passar dos anos ela vai se tornar a típica mulher contemporânea, calculista e fria. Analisa cada passo que dá e isso é brilhantemente mostrado pelo figurino apresentado no filme. Barbara Baum, que cuidou das roupas dos personagens e consequentemente da personagem principal, dá uma aparência soturna e quase repetitiva nos vestidos e roupas de Maria, para posteriormente ir a ajeitando e a tornando em uma espécie de mulher de classe determinada; com colares de pérolas, vestidos sedutores e véus detalhados.
Com a mesma frieza que Maria tratou a provável morte de seu marido (se relacionando com um soldado negro e norte-americano chamado Bill) é com a mesma frieza que ela trata o retorno dele, matando seu amante silenciosamente pelas costas, nem indo a julgamento podemos ver alguma expressão sua de tristeza ou remorso. Talvez seja nesse momento em que ela percebe que precisa pôr suas ações na frente dos sentimentos. São os novos tempos, em que é preciso sangue frio para elevar-se. Aristóteles escreveu que os homens, ao filosofar, buscaram o conhecer a fim de saber e não para conseguir alguma utilidade prática. Então, a filosofia nasceu apenas depois que os homens resolveram os problemas fundamentais da subsistência e se libertaram das necessidades materiais mais urgentes. Ou seja, na Alemanha do pós-guerra, não há tempo para filosofar, para ser complacente ou até mesmo para se importar com os outros. Isso torna Maria Braun uma mulher de objetivos, e não de sentimentos. Culpá-la? Quem sabe.
O primeiro chanceler alemão a assumir depois da guerra foi Konrad Adenauer, conhecido por palavras célebres como "esqueçamos o Nazismo, estamos entrando na era do milagre econômico". Ele foi um democrata-cristão que durante O Terceiro Reich de Hitler, muito sofreu por atacar o Nazismo, sua face é uma das que aparece ao final do filme, junto com alguns outros como: Ludwig Erhard, Kurt Georg Kiesinger e Helmut Schmidt, chanceleres até a época de produção do filme (1978-1979). Curiosamente, Fassbinder pulara um personagem, chanceler da Alemanha entre 1969 e 1974, Willy Brandt, que após um governo considerado bom e alguns escândalos acabou se demitindo. Ele não aparece na ordem cronológica das fotos finais.
O Casamento de Maria Braun pode ser definido objetivamente como o microcosmo de uma mulher que contou a história de um país em ruínas. Dos destroços ao Wirtschaftswunder (termo utilizado para definir o rápido desenvolvimento da economia na Alemanha Ocidental). E também a história de um povo que não estava lá.. Imaginemos os nazistas, em 1945, antes de perderem, e depois, em 1946, onde estavam? Para onde foram? Quem eram eles? Evaporaram? Não, ainda era o mesmo povo.. a mesma gente, só disfarçada de alguma outra coisa.
Ao final, vemos enfim o encontro em paz de Hermann e Maria, é triste pensar que depois de tão pouco tempo juntos, passado tudo o que passaram, eles ficariam ainda menos tempo, ainda que tivessem superado todos os problemas econômicos e emocionais. Talvez essa seja uma das grandes metáforas do filme, como os soldados que morriam na guerra por uma Alemanha que eles não exatamente conheciam, Maria era leal ao seu marido, embora ele fosse na maior parte do tempo, um desconhecido sempre distante.
Depois de conquistar absolutamente tudo, Maria Braun era uma estranha para a sua própria família, esquecendo de objetivos tão simples como: desligar o fogão. Em paralelo a sua morte, ouvimos a narração da final da Copa do Mundo de 1954 (na Suiça), entre Alemanha Ocidental e Hungria, em uma das viradas mais memoráveis da história do futebol, após estar vencendo por 2 x 0 aos 8 minutos do primeiro tempo, a eterna seleção húngara de Puskas sofreria a derrota mais amarga de sua história, em um mundial que parecia já ser húngaro, resultado 3 x 2, Alemanha campeã pela primeira vez na história da competição. Na própria história do Brasil (..1994, 2002..), como da URSS também (1980), o esporte ajuda a elevar a moral de uma nação, que brasileiro nunca reclamou disso? Da alienação que o futebol traz, ao mesmo tempo em que pergunto: Qual brasileiro nunca gritou gol? Para a Alemanha Ocidental, naquele momento, aquela vitória significava o que Maria Braun buscou durante sua vida inteira: ser alguém de novo.
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