A princípio, O Congresso Futurista é um filme de desmaterialização do corpo. Do plano de abertura em diante, temos uma tendência à virtualidade, a câmera enfocando corpos e rostos voltados constantemente para o extracampo (o primeiro plano com Robin Wright às lágrimas, ouvindo seu agente). O que importa não é o tempo/espaço presente, tampouco os corpos que o habitam, mas o que está do outro lado, o não visto e o não corpóreo. A pipa do menino Aaron é um símbolo desse desejo: o corpo flutuante que se mistura no céu azulado e nos raios de luz, dissolvendo-se no fluxo cromático. A pipa já não é matéria: é pura forma e cor. Por fim, o mundo da animação, onde os corpos de carne e osso são convertidos em linha e desenho. Em terra de absoluta virtualidade, quem reinam são os fantasmas: os corpos tornam-se espectros de imagem, ultrapassando o tempo e o espaço e se deslocando em todos os contextos possíveis.
Não que isso seja exclusividade da animação: no primeiro ato em live-action, quando a imagem de Aaron é projetada no vidro refletor, contra as imagens de sua mãe e o médico, corpos de diferentes espaços são colocados no mesmo plano, contra as imposições da matéria. Mas é no desenho animado que essa subversão se torna a regra, inclusive em imagens de considerável grotesco, o colorido pop e as caricaturas grosseiras evocando mais um mundo de aberrações do que de fantasmas. E contra todas as expectativas, a libertação do corpo não acompanha a libertação do consumismo. Pelo contrário: quando a matéria já não é mais um problema, o consumo das imagens é levado ao limite, sendo praticamente inesgotável (afinal, como descartar uma virtualidade?). É essa, inclusive, a tragédia da protagonista: descartada pelo star system, Wright vende sua imagem para perder ainda mais o controle sobre ela, e é tocante a maneira como o filme retrata esse drama, especialmente na cena derradeira da captura das expressões.
Essa seria uma interpretação adequada do filme não fosse pelo detalhe de que na animação também existem corpos. No estilo gráfico de Folman, mesmo o desenho mais solto e cartunesco não dispensa detalhes de sombreamento e anatomia, o que sugere um corpo tridimensional. O melhor exemplo é a caricatura da protagonista: as rugas do rosto e demais linhas do corpo, aliadas à faixa lateral de sombra e às sugestões de volume, evocam o corpo de carne e osso do primeiro ato. O mesmo vale para a cenografia, incluindo os cenários mais psicodélicos: o arranjo complexo dos espaços, as possibilidades de percurso e as nuances de textura aludem ao arranjo tridimensional. O desenho, tal como o live-action, recria a terceira dimensão no plano bidimensional, dotando seus corpos e espaços com profundidade - profundidade de matéria e profundidade de corpo (e profundidade psicológica).
Portanto, o diferencial da animação não é a desconstrução do corpo mas a transformação do mesmo. O desenho animado é potencialmente metamórfico porque a linha não se sujeita a massa ou ao volume: ela pode moldar todas as formas e proporções possíveis, independente de qual seja o seu ponto de partida. Isso também se dá no plano da cor e luz e sombra, vide o apagão que dissolve o corpo de Wright em chiaroscuro. A pipa, nesse sentido, ganha outro significado: o fluxo cromático não representaria a perda da matéria, mas uma transformação da mesma, e é nesse processo de metamorfose que reside uma promessa de liberdade. O corpo pode ser subvertido, já não se prendendo ao determinismo da matéria.
Contudo, ocorre justamente o contrário. No plano do desenho animado, as personagens buscam não a transformação de seus corpos, mas a assimilação de outros. O livre-arbítrio é domesticado numa adoração às personas: a meta não é revolucionar a si próprio, mas se tornar Cristo, Marilyn Monroe, Elvis Presley, Robin Wright… Trágica ou ironicamente, o desenho animado também se encaixa nessa proposta. A caricatura constrói personalidades com poucos recursos, bastando-lhe alguns traços característicos para evocar uma persona (o topete de Elvis Presley, as sobrancelhas de Frida Kahlo, a pinta de Marylin Monroe). A animação Disney, principal referência da animação ocidental, preconiza o desenho de personalidades, indivíduos dotados de pensamento e emoção que pressupõem uma configuração formal particular, a ser mantida em todo o longa-metragem. Trai-se a subversão do corpo e volta-se à materialidade definitiva.
Eis então a crítica de Ari Folman: o diretor deseja a revolução da matéria, o nonsense e o lúdico que dão à protagonista, transformada em mulher-pássaro, um momento de orgasmo ao som de Forever Young. E além do corpo, o desenho subverte a própria lógica de tempo e espaço que sustenta a construção narrativa. O reencontro da cena final deve-se muito mais a essa transgressão do que a uma ordenação lógica dos fatos, e o que a imagem oferece não é um mero escapismo da realidade mas uma intervenção concreta no mundo.
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