Antes de mais nada, ou acima de tudo, para comentar sobre o filme O conto, é preciso destacar a coragem de sua realizadora, Jennifer Fox, em fazer uma obra fílmica sobre um problema social – a pedofilia – a partir da história de vida de quem a realiza. Atualmente, vive-se um momento em que inúmeros casos desse tipo de violência são cometidos, de modo que, cada vez mais, é importante desenvolver a consciência de que para retirar os criminosos das sombras, é necessário, ainda que doloroso, que as vítimas também saiam dela. O filme The Tale se trata, portando, da história da personagem Jennifer Fox em sua luta para compreender e aceitar de fato o que lhe aconteceu quando tinha 13 anos (então apenas Jenny Fox), época em que convivera com seus instrutores de equitação, Bill Allens e Senhora G.
No entanto, para dissertar sobre o filme O conto, também é importante se ressaltar que o crime de pedofilia, de certa forma, pode ser comparável ao processo de escravização dos negros ou dizimação dos índios nas américas, pois não há explicação que justifique a natureza abjeta de tal ato. Por outro lado, como se tratam de eventos que passaram e passam por um processo de escamoteação pela sociedade, a própria denúncia desses crimes tende a despertar controvérsias, como se coubesse algo às vítimas que, em algum momento, tinham o dever de fazer. Nessa análise do filme O conto, entendo Jennifer Fox (personagem e diretora) como uma vítima a quem não cabe nenhum “dever” em relação ao ato que sofrera (salvo denúncia, obviamente). Assim, qualquer crítica aqui tecida se dirige ao filme (nunca à vítima retratada), e se, mesmo assim, o texto incorrer nesse equívoco (o fará pelo mal-uso da linguagem), fica a solicitação de escusas pela ignorância de alguém diante de um assunto tão sério.
Feitas as ressalvas necessárias, podemos analisar o filme O conto naquilo que entendemos como seus acertos e erros artísticos. O primeiro grande acerto da película a se destacar (mesmo que soe como trivialidade) se refere ao título (felizmente, traduzível literalmente), isso porque “tale”, que também poderia significar “fábula”, não é só o texto escrito pela jovem Jenny Fox, funciona ainda como metáfora para a história de vida que ela elaborou (ou foi levada a fazê-lo) sobre suas experiências reais com os personagens Bill e Senhora G.
Outro êxito se refere aos primeiros 19 minutos (aproximadamente) de The Tale que estão diretamente relacionados com o título, tanto porque a mãe de Jennifer encontra o texto que inspirou o filme, como porque assistimos à dupla revelação do conto criado pela protagonista: primeiro a partir da sua mãe, revelando o texto físico e a nova leitura que Jennifer faz, depois por ela própria, quando descobre que a Jenny Fox imaginada por ela aos 13 anos não era de fato como ela projetava, portanto, as ações praticadas e sofridas nessa época também poderiam ter outro significado (e tinham). Jennifer Fox, a diretora, acerta ao entrelaçar as cenas do passado, referentes à personagem com 13 anos, com as ações da protagonista, no presente, em sua tentativa de compreender seu passado e, portanto, “reescrever” a história da sua vida. Atreladas a isso, as atuações de Laura Dern (Jennifer adulta), mesmo um tanto contida, e de Isabelle Nélisse (Jennifer aos 13 anos) correspondem ao tratamento que produção de Fox propõe para cada personagem, uma vez que, mesmo diante do drama inerente à temática, em poucos momentos o filme parece exigir de seus atores um grande esforço performático, exceto, é claro, para Isabelle Nélisse, que corresponde a contento.
Como aspecto negativo, O conto não conseguiu transparecer, à fundo, os efeitos psicológicos dessa reescrita para a protagonista. Em momentos, parecia que ela lutava para tentar encontrar o responsável por algo incógnito que sofrera. Ora, a protagonista experiencia essa reviravolta aos 48 anos, portanto, não era difícil para ela entender o que lhe acontecera e quem fora o responsável. As chocantes cenas entre Jenny Fox e Bill, por meio de flashbacks, confirmam isso, não só para o expectador, mas (como eram lembranças) também para a protagonista. Estranhamente, a revelação da participação da Senhora G., de fato surpreendente tanto para ela como para o expectador, parece pouco importante diante da obstinação da protagonista em encontrar-se com Bill.
Essa necessidade de encontrar Bill é que fica mais estranha (mesmo com ela sabendo de outros casos, em nenhum momento ela pensa em algum tipo de denúncia), pois parece que a protagonista procura uma explicação dele, como se, em suas lembranças, não ficasse mais do que claro a natureza dissimulada e doente de Bill para aliciar, tentando imprimir na vítima parte da responsabilidade pelo ato praticado. Durante o encontro com Bill, Jennifer (a personagem) pergunta: “O que aconteceu com você, pra você ter feito aquilo comigo?”. Não parece que ela busca uma explicação (justificativa)? Depois ele responde: “Não fui eu. Não fui eu, foi você!”. O diálogo termina com ele lançado para ela parte ou toda a responsabilidade, enquanto ela diz que acreditou na história dele, à época, mas ele que era o adulto.
De fato, a forma como a película de Jennifer Fox foca e desenvolve a história de sua protagonista pouco excede os limites de uma biografia, seu efeito catártico parece se voltar – com justiça e relevância – apenas para sua realizadora. Assim, penso, mesmo que outras pessoas, vítimas ou não de pedofilia, assistam ao filme O conto, se identifiquem em parte, não sei se encontrarão nele um exemplo de reflexão profunda, inteligente e sensível (exceto pelos primeiros minutos do filme) ou, sobretudo, um caminho para ela (que penso ser um dos pontos positivos da arte). Isso não quer dizer que essa produção fílmica não seja profunda, inteligente e sensível, afinal, com o seu tema, apenas sendo assim uma obra pode ser considerada relevante, mas, como obra de arte, me parece que The Tale não é tão reflexivo quanto a temática pede. Portanto, sua história não consegue ser universal, isso porque não “sai” das experiências de Jennifer Fox, é sobre ela que pensamos e falamos, ao final, mas pouco ou nada sobre outras Jennifer’s.
Assistindo-o, ou mesmo lendo sua sinopse, percebemos que a história de O conto é um drama extremamente profundo e tenso, o desvelamento da história que a protagonista contava para si como “forma de sobreviver”, acarreta, invariavelmente, uma pergunta: “como sobreviver agora?”. No entanto, essa pergunta não transparece no filme, muito menos a imagem de uma personagem enfrentando os dilemas e dores de se reconhecer imersa nos efeitos de um trauma do qual não se dava conta.
Por outro lado, devemos ser sensíveis à dificuldade que, presumo, foi para a Jennifer Fox dirigir essa película. A dor do trauma, o incômodo das lembranças, a indignação e a revolta certamente lhe confrontavam durante as filmagens, levá-la a termo, independente do que se fale ou critique, já é uma realização imensa e louvável (tanto pessoal quanto artística). Entretanto, se faltou tensão e dramaticidade no desenvolvimento do filme, ouso interpretá-lo como a nova história reescrita pela diretora. Se a película fala do desvelar da história que Jennifer contava para si como “forma de sobreviver”, talvez o filme, em si, seja a resposta para aquela pergunta que afirmei não transparecer em O conto. Assim, para a pergunta “como sobreviver agora?”, Jennifer Fox magistralmente responde: “fazer um filme”.
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